Pio X não exigiu ‘participação ativa’ na Liturgia
Dr.ª Carol Byrne, Grã-Bretanha
Discrepâncias entre os textos latinos e vernáculos do Tra le Sollecitudini
No último artigo, apontamos discrepâncias entre as versões
italiana e latina do motu proprio Tra le Sollecitudini (TLS), do Papa
Pio X, mencionando que a palavra “ativo” foi adicionada ao texto italiano para
descrever a participação dos leigos.

Neste artigo, trataremos mais de perto da versão italiana do
TLS publicada na Acta Sanctæ Sedis em relação ao texto latino autêntico
e mostraremos como, na questão crucial da participação dos fiéis na liturgia,
eles divergem em significado. Claramente, ambos os textos não podem
representar, ao mesmo tempo, a intenção do Papa.
Examinemos o § 3 da versão latina, que indica as intenções
do Papa Pio X. Em poucas palavras sucintas, ele afirma que o canto gregoriano,
transmitido pela Tradição, deve ser plenamente restaurado aos ritos sagrados:
Cantus gregorianus, quem transmisit traditio, in sacris solemnibus omnino est instaurandus.
Em seguida, explica por que o canto gregoriano deve ser
devolvido ao povo: para que, em particular, os fiéis cristãos possam, uma vez
mais, segundo o costume dos seus antepassados, participar mais ardentemente da
liturgia:
Præsertim apud populum cantus gregorianus est instaurandus, quo vehementius Christicolæ, more maiorum, sacræ liturgiæ sint rursus participes.
Agora, examinaremos as armadilhas de se ter um documento em
vernáculo (italiano e inglês) e os equívocos que podem surgir devido a
traduções incorretas.
“Pelo povo”
O TLS diz que o canto gregoriano deve ser restaurado nell’uso
del popolo (“para uso do povo”) na liturgia. Não especifica quais pessoas,
nem com que propósito – se cantando ou ouvindo – elas devem usar o canto. Pior
ainda: a versão inglesa afirma que o uso do canto gregoriano pelo povo é
exatamente o que o Papa pretendia. A sugestão implícita, feita por essas
paráfrases vagas e generalizadas, é que “o povo” significa toda a congregação,
e que o Papa queria que todos participassem do canto.
Mas essa é uma suposição que não se sustenta no texto
latino, que afirma que o canto gregoriano deve ser restaurado apud populum,
ou seja, “entre” ou “na presença dos fiéis”; em outras palavras, nas igrejas. O
Papa já havia expressado essa ideia na introdução: ubi Christicolæ
congregantur (“onde os fiéis se reúnem”).
Apud é uma preposição que indica proximidade ou
localização geográfica e não pode ser traduzida por uma frase que implique
instrumentalidade, como algo feito “pelo povo”. Ao dizer que o canto gregoriano
deveria ser devolvido ao povo, o Papa não deu nenhuma indicação — nesta
passagem ou em qualquer outra parte do documento — de que desejasse que fosse
cantado por todos os fiéis.
“Participação ativa”
O problema gira em torno da interpretação da “participação”
dos leigos na liturgia conforme entendida por Pio X. Enquanto o substantivo participatio
é usado isoladamente na versão latina, a tradução italiana do TLS extrapola ao
adicionar a palavra “ativa” (partecipazione attiva). Isso ocorre várias
vezes, embora não haja nenhum equivalente a “ativo” no texto latino.

Como a precisão é fundamental para garantir que as traduções
transmitam todo o significado do original, não se pode presumir que o redator
da versão latina tenha omitido a palavra “ativo” por considerá-la implícita em
“participação”.
(A propósito, os italianos também foram os primeiros a
traduzir pro multis nas palavras da consagração como “por todos”, na
suposição de que “por muitos” implicava “por todos” — erro que levou a um
mal-entendido sobre a natureza do Santo Sacrifício da Missa.)
Nenhuma parte da versão latina do motu proprio indica que o
Papa previa um papel “ativo” para a congregação. Os parágrafos 12 a 14 mostram
que os únicos intérpretes leigos autorizados são os membros do coro, excluindo
as mulheres. Como a raison d’être do canto gregoriano era o texto, e não
o povo, a intenção do Papa era revestir o texto de beleza (verba liturgiæ
exornare — embelezar as palavras da liturgia), não fazer a congregação
cantar em uníssono.
Aqueles que insistem que o TLS foi um manifesto para o canto
congregacional cometem o erro de dar precedência à chamada participação “ativa”
sobre a Lex orandi — a maneira como as orações e os textos litúrgicos
transmitem a fé na imutável língua latina.
“Uma parte mais ativa”
A versão latina usa a palavra vehementius para
indicar a forma como os fiéis devem participar da liturgia. Ela foi traduzida
de modo livre e incorreto nas versões italiana e inglesa como se o Papa
dissesse que todos devem desempenhar uma “parte mais ativa” (parte più
attiva) na liturgia, dando a impressão de que isso se realiza quando todos
cantam o canto gregoriano. Mas o texto latino não apoia essa leitura.
Vehementius é a forma comparativa do advérbio latino vehementer,
que era usado desde a Antiguidade clássica — e também em textos eclesiásticos —
para indicar intensidade emocional, força interior ou outras disposições da
alma. Pode ser traduzido como “mais ardentemente”, “mais intensamente” ou “com
maior fervor”.
Papa Pio X usou essa palavra assim: vehementer optemus
(“desejamos ardentemente”) na introdução do motu proprio para expressar seu
desejo fervoroso de restaurar o canto gregoriano. Ele também a utilizou na
encíclica Vehementer Nos (1906) para demonstrar sua profunda dor diante
das injustiças sofridas pela Igreja devido à nova legislação francesa de
laicismo estatal.
Não há base para crer que o Papa estivesse comparando
cantores e não cantores, ou sugerindo que os últimos fossem, de alguma forma,
deficientes. Ele estava, sim, comparando o canto gregoriano com estilos
musicais profanos quanto à sua eficácia em aumentar a participação orante na
liturgia.
No § 2, o Papa menciona o poder especial da música sacra
para tocar a mente dos fiéis que a ouvem (in animis audientium illam),
induzindo-os à devoção e tornando-os mais dispostos a acolher os frutos da
graça. O ponto-chave aqui é que a compreensão da natureza da Missa é
grandemente facilitada pela escuta das notas sublimes do canto gregoriano,
interpretadas por um coro bem treinado — não pela congregação inteira.
A escuta, portanto, é aprovada pelo Papa como forma frutuosa
de participação na liturgia. Isso é reafirmado no § 9, que afirma que o canto
deve ser executado pelo coro em benefício dos fiéis que o escutam, e de
forma inteligível, ou seja, com dicção clara, para não obscurecer o texto.
Para alcançar esse efeito, é necessário que o canto seja
executado por coros bem treinados: as vozes devem ser puras, contidas, sem
elementos mundanos ou de autoexpressão. Essa foi uma das razões pelas quais o
Papa não atribuiu à congregação nenhuma parte cantada da liturgia.
A música sacra na Missa sempre foi considerada
“participativa” para os fiéis, na medida em que os edifica, instrui e eleva à
devoção. Assim, seguir suas devoções privadas enquanto o coro canta não pode
ser considerado ausência de participação. No entanto, os reformadores
litúrgicos sustentaram que uma verdadeira compreensão da Missa exigia o
abandono dessas orações silenciosas, em favor de uma participação vocal direta
— algo que o Papa Pio X jamais ordenou.
“Nos tempos antigos”
Alguns liturgistas apressaram-se em concluir que o Papa
queria que a Igreja voltasse à prática dos primeiros cristãos, os quais
incluíam algum grau de canto congregacional. Mas de onde tiraram essa ideia?
Certamente não da versão latina do motu proprio, que nada menciona sobre
“tempos antigos”.

A impressão se originou nos textos vernáculos sobre o
significado da expressão latina more maiorum (“segundo o costume dos
ancestrais”), usada por Pio X no § 3 com referência ao canto gregoriano. A
versão italiana usa o termo ambíguo anticamente, que pode significar
tanto “na antiguidade” quanto “no passado recente”. A versão inglesa, ignorando
o segundo sentido, afirma que o canto gregoriano era o costume em “tempos
antigos” não especificados. Nenhuma dessas traduções se aproxima da precisão de
more maiorum.
É importante compreender o peso dessa expressão. Mos
maiorum (costume dos antepassados) era o código não escrito de valores
tradicionais observados pelos antigos romanos, que moldava sua vida cultural,
política e militar. Representava práticas consagradas pelo tempo e transmitidas
de geração em geração.
Assim como a adesão à tradição dava aos romanos um senso do
que era apropriado, o mesmo vale para o canto gregoriano, que possui longa e
venerável tradição na Igreja. Como o Papa explicou, ele foi transmitido pela
tradição: quem transmisit traditio.
Agora podemos entender por que o canto gregoriano deve ser
devolvido ao povo: para que, por meio de seu poder especial de tocar a alma, os
fiéis possam voltar a participar da liturgia more maiorum — como faziam
as gerações anteriores de católicos, antes de a música teatral e profana
invadir as igrejas.
Portanto, não há qualquer referência ao canto
congregacional, que, mesmo quando presente em determinados tempos e lugares,
jamais foi um costume universal e estabelecido do rito romano. Assim, não
poderia ser considerado parte do mos maiorum.
Podemos estar certos de que a tradução “nos tempos antigos”
é falsa por dois motivos: primeiro, porque more maiorum refere-se a uma
tradição contínua e ininterrupta; segundo, porque costumes abandonados por
séculos não podem ser reincorporados à liturgia sem ferir sua natureza
intrinsecamente tradicional. De fato, qualquer tentativa nesse sentido foi
posteriormente condenada como antiquarismo pelo Papa Pio XII na Mediator
Dei.
- Assim, lemos, por exemplo, em De Bello Africo Commentarius que “Quibus ex rebus Caesar vehementer commotus” (César ficou muito alarmado com essas coisas), e em De Bello Civilique sua famosa Nona Legião era “vehementer attenuata” (muito diminuído).
- No § 6, o Papa deplorava particularmente o estilo de música recentemente utilizado na liturgia: “Entre os diferentes tipos de música moderna, o que parece menos adequado para acompanhar as funções do culto público é o estilo teatral, que estava em a maior voga, especialmente na Itália, durante o século passado. Isso, por sua própria natureza, é diametralmente oposto ao canto Gregoriano e à polifonia clássica e, portanto, à lei mais importante de toda boa música sacra. Além da estrutura intrínseca, o ritmo e o que é conhecido como o convencionalismo deste estilo se adaptam, mas mal, às exigências da verdadeira música litúrgica.”
- Clareza de enunciação também foi enfatizada pelo Cânon 8 do Concílio de Trento.
- Obviamente, esse não é o significado pretendido aqui por duas razões. Em primeiro lugar, o canto Gregoriano como um corpo musical distinto não existia no início da era Cristã. Em segundo lugar, o uso do Tempo Imperfeito “solevasì” em Italiano indica uma ação que já ocorria por um longo período de tempo (como a tradição do canto Gregoriano), não algo que havia desaparecido há muito tempo (como o canto congregacional), para o qual um tempo passado diferente teria que ser usado.
- Eneida de Virgílio celebra o mos maiorum do povo Romano, conforme representado no personagem de Enéias. Ele sintetizou o ideal Romano de pietas, o conceito central da moralidade romana antiga que incluía deveres para com a religião, a família, a comunidade mais ampla e a pátria.