O início da nova Reforma Litúrgica
Dr.ª Carol Byrne
No artigo anterior, foram dados exemplos que mostram que a suposta versão oficial italiana do motu proprio Tra le Sollecitudini (TLS), de São Pio X, constitui, em alguns aspectos, um novo texto, com um espírito de novidade que não existe na versão latina. Qualquer pessoa que reflita um pouco sobre as implicações dessa anomalia perceberá o que está errado.

Esse espírito independente é notavelmente evidente nos
pontos-chave em que o TLS (e outras versões vernáculas) diverge do texto
latino. Podem ser resumidos assim:
- Um apelo à adoção das práticas litúrgicas da Igreja primitiva no que diz respeito ao canto congregacional, “como era nos tempos antigos”;
- A sugestão de que a vocalização dos leigos é o critério decisivo de sua verdadeira participação na liturgia;
- Uma mudança de ênfase em direção ao “sacerdócio comum dos batizados” e um distanciamento do sacerdócio sacramental do padre, que é o único que oferece a Missa em nome dos vivos e dos mortos;
- Uma crítica implícita à participação silenciosa dos leigos, que podem estar fazendo orações privadas durante a Missa.
Quanto a quais desses pontos o Papa São Pio X endossa, a
resposta é: nenhum.
Embora alguns possam argumentar que a “participação ativa”
dos leigos pode ser interpretada de formas distintas, a expressão acabou sendo
conduzida por sua própria lógica interna a focar a atenção no povo e a inflar o
sentido das suas ações na liturgia. O resultado inevitável — embora poucos o
tenham percebido na época — foi o uso desse conceito para justificar a
destruição de séculos de liturgia católica e a criação de uma Missa
radicalmente nova, na qual o “Povo de Deus” é considerado celebrante em pé de igualdade
com o sacerdote.
O papel de Dom Lambert Beauduin
Depois que a expressão fatídica — e totalmente inadequada —
“participação ativa” surgiu do nada em 1903, foi recebida com silêncio. Poucos
sabiam o que fazer com ela, a não ser aqueles que tinham uma agenda bem
definida.
O primeiro a agarrar a bola e sair correndo foi o monge
beneditino Dom Lambert Beauduin (1873–1960), do mosteiro de Mont César, na
Bélgica. Seu objetivo era ecumênico e secular: promover o “sacerdócio universal
de todos os fiéis” por meio de uma liturgia “participativa” e uni-los em um
programa comum de reforma social e de “unidade pan-cristã”.
Não à toa, Beauduin é considerado o fundador do NovoMovimento Litúrgico e um profeta da “pastoral” do Vaticano II. Na verdade,
antecipou em meio século os principais avanços progressistas do Concílio nas
áreas da liturgia, do ecumenismo e da eclesiologia.
O bárbaro na cidadela
Desde o início de sua carreira clerical, Beauduin revelou uma profunda alienação em relação aos valores e à espiritualidade do catolicismo tradicional. Empreendeu uma campanha de hostilidade crescente contra as devoções católicas. Ainda nos tempos de seminário, rebelou-se contra o regime de espiritualidade e contra a necessidade de seguir as estritas rubricas da Missa (1).

É evidente que, como sacerdote, Beauduin não havia recebido
— por ter rejeitado — uma formação católica adequada. Em vez disso, passou seus
dias no seminário de Liège sob a tutela do professor de Teologia Moral, Pe.
Antoine Pottier, que, como líder local do movimento Democrata-Cristão, era um
incendiário político, envolvido em manifestações e greves operárias.
As atividades militantes pró-trabalhadores de Pottier, juntamente com seu antagonismo contra os empregadores em Liège, levaram Leão XIII a intervir pessoalmente, em 1895, exigindo que abandonasse seu ativismo social e político em nome da paz e da ordem (3).
Logo após sua ordenação, em 1897, Beauduin ingressou na Congrégation
des Aumôniers du Travail, uma sociedade de padres operários fundada por Dom
Victor Doutreloux, bispo de Liège. Passou então sete anos vivendo entre os
trabalhadores, seguindo os passos do Pe. Pottier, após a aposentadoria forçada
deste último.
Essa experiência radicalizou sua visão. Assim como via a
sociedade como um campo de conflito entre ricos e pobres, industriais e
operários, passou a ver na constituição da Igreja uma contrapartida desse
embate. Defendia que a participação ativa na liturgia uniria os fiéis para a
mudança social e para a “emancipação” dos leigos da “dominação” clerical. Neste
ponto, o Movimento Litúrgico se tornava, de fato, uma plataforma de propaganda
marxista dentro da Igreja.
Mont César: viveiro da reforma litúrgica

Mont César tornar-se-ia o centro de planejamento estratégico
de diversos projetos: promover a “participação ativa” dos leigos; adaptar a
liturgia às necessidades contemporâneas; vinculá-la ao ativismo social;
reorientar a vida monástica — que, segundo Beauduin, era “fechada demais em si
mesma” — para o mundo exterior; e fomentar o ecumenismo entre religiões sem
qualquer intenção de conversão ao catolicismo.
A entrada de Beauduin em Mont César também lhe trouxe vantagens materiais: soube aproveitar os recursos financeiros do mosteiro para lançar o Movimento Litúrgico de uma forma que não seria possível a um simples pároco. Tinha à disposição um grupo de monges dispostos a colaborar na preparação de suas publicações, que eram divulgadas por meio da tipografia do mosteiro. Além disso, organizava semanas litúrgicas e retiros nas dependências da abadia.
- Estes ele descartou zombeteiramente como uma "série de regras minuciosamente detalhadas e arbitrárias impostas, ao que parece, para testar a paciência daqueles que os estudam e os colocam em prática” (série de prescriptions minutieuses et arbitraries, imposées, croirait-on, pour exercer la patience de ceux qui les étudient et les accomplissent). Citado em Jacques Mortiau, Raymond Loonbeek e Enzo Bianchi, Don Lambert Beauduin Visionnaire et Précurseur: un moine au coeur libre, Cerf, 2005, pp. 22-23.
- Ibid., p. 20.
- Jean-Louis Jadoulle, “Question sociale et politique pontificale. L'itinéraire d'un démocrate chrétien: Antoine Pottier (1849-1923)’,” Revue belge de Philologie et d'Histoire, 1991, vol. 69, n. 69-2, p. 318. Também é claro que Pe. Pottier aderiu à visão Socialista de que os trabalhadores tinham direito a uma participação igual nos lucros obtidos por seus empregadores (ibid., pp. 310-311, e que os salários deveriam ser fixados pelo Estado.