Do Ensaio à Contestação: Da Missa Normativa (1967) ao Breve Exame Crítico (1969)

 Em 1965 a concelebração estava “restrita” a quantos ministros pudessem “razoavelmente” circundar o altar

Introdução

O caminho que vai da Missa Normativa, celebrada em 1967, até a publicação do Breve Exame Crítico do Novus Ordo Missæ, em 1969, é um itinerário que revela tensões profundas na vida da Igreja pós-conciliar. O que começou como um ensaio litúrgico diante dos Padres Sinodais transformou-se rapidamente em uma reforma oficial, promulgada por Paulo VI em 1969, mas acompanhada de resistências que não podem ser descartadas como meras nostalgias.

Na Capela Sistina, os bispos e cardeais viram uma liturgia modificada, mais simples, mais voltada à assembleia e com elementos inéditos em séculos de prática. Alguns aplaudiram a novidade; outros levantaram reservas. Dois anos depois, essas reservas se cristalizariam no documento conhecido como Breve Exame Crítico, redigido por teólogos e subscrito pelos cardeais Alfredo Ottaviani e Antonio Bacci, ambos com autoridade moral significativa no cenário eclesial.

Esse documento não foi uma mera nota de rodapé da história, mas uma denúncia vigorosa de que o novo rito da Missa, o Novus Ordo Missæ, se afastava da doutrina católica sobre o sacrifício eucarístico e se aproximava perigosamente da teologia protestante. Seu impacto foi tão grande que obrigou o Papa Paulo VI a intervir pessoalmente, defendendo a ortodoxia da reforma em catequeses de 1969 e 1970.

O elo entre 1967 e 1969 é direto: as dúvidas, críticas e receios manifestados no Sínodo não desapareceram; pelo contrário, amadureceram e se expressaram de forma mais contundente. A Missa Normativa foi o terreno de prova; o Breve Exame Crítico foi a consequência inevitável.

Assim, para compreender as raízes da crise litúrgica contemporânea, é essencial analisar esse percurso, que vai do ensaio geral diante dos bispos ao confronto aberto diante do mundo.

1. O Sínodo de 1967 como Sinal de Alerta

O Sínodo de 1967 não foi um momento secundário, mas um sinal claro de que a reforma litúrgica caminhava sobre terreno instável. As votações mostraram que não havia consenso, e que muitos bispos não estavam convencidos da segurança doutrinal e pastoral das mudanças propostas.

A rejeição parcial à estrutura da Missa Normativa, bem como a resistência contra a supressão do Mysterium fidei e outras inovações, indicavam que os pastores da Igreja intuíram riscos reais. Não se tratava de uma mera disputa estética, mas da percepção de que o novo rito alterava a forma de transmitir a fé no mistério eucarístico.

A crítica ao tecnicismo do Consilium reforçou essa preocupação. O receio era que, ao ser reconstruída em laboratório, a liturgia perdesse o vínculo com sua organicidade histórica e com a espiritualidade católica. Esse deslocamento metodológico — da tradição viva para a comissão acadêmica — alimentava a desconfiança.

As reações de cardeais como Heenan e Cicognani mostram que o problema não era isolado ou fruto de uma minoria extremista, mas uma questão de responsabilidade pastoral: como introduzir mudanças sem causar confusão entre os fiéis?

Em suma, o Sínodo de 1967 foi um alerta. Mas, em vez de frear ou reorientar a reforma, a máquina seguiu adiante, transformando aquele ensaio em realidade apenas dois anos depois.

2. A Promulgação do Novus Ordo Missae em 1969

No dia 3 de abril de 1969, Paulo VI promulgou a Constituição Apostólica Missale Romanum, com a qual introduziu oficialmente o Novus Ordo Missæ. Era o passo decisivo: a Missa Normativa, antes apresentada como um protótipo, tornava-se agora a liturgia obrigatória para a Igreja latina.

A nova missa continha muitos dos elementos já ensaiados em 1967: a multiplicação das Orações Eucarísticas, a simplificação de ritos, a centralidade da Liturgia da Palavra, a participação da assembleia em língua vernácula e a flexibilidade nas adaptações. O missal de 1969 refletia claramente o espírito do Consilium.

Paulo VI apresentou a reforma como fruto do Vaticano II e como uma exigência pastoral. Em seus discursos, sublinhava a necessidade de tornar a liturgia mais acessível ao homem moderno e de promover maior participação dos fiéis. O tom era de confiança e otimismo, como se o novo rito fosse uma resposta providencial às necessidades da época.

No entanto, nem todos compartilharam dessa visão. Teólogos, clérigos e leigos perceberam que o novo missal não apenas modificava a forma, mas também o acento teológico. Para muitos, a ênfase na assembleia e na refeição parecia obscurecer o caráter sacrificial da Missa, ponto central da fé católica.

O lançamento do Novus Ordo não encerrou as tensões iniciadas em 1967; pelo contrário, trouxe-as à tona de forma mais intensa, preparando o terreno para o Breve Exame Crítico.

3. O Breve Exame Crítico de Ottaviani e Bacci

Em setembro de 1969, os cardeais Alfredo Ottaviani, ex-prefeito do Santo Ofício, e Antonio Bacci, renomado latinista, entregaram ao Papa Paulo VI o Breve Exame Crítico do Novus Ordo Missæ. O documento havia sido redigido por um grupo de teólogos, entre os quais se destaca Jean Madiran, e refletia as preocupações de uma parte significativa da Igreja.

O texto acusava o novo rito de se afastar da teologia católica do sacrifício eucarístico. Segundo o documento, o Novus Ordo “se distancia de maneira impressionante, no conjunto e nos detalhes, da teologia católica da Santa Missa, tal como foi definida na Sessão XXII do Concílio de Trento”. Essa era uma denúncia grave, pois implicava a suspeita de ruptura doutrinal.

O documento apontava três aspectos principais: a redução da Missa a uma ceia comunitária, a ambiguidade em relação à presença real de Cristo e a aproximação perigosa com a liturgia protestante. Para os autores, a reforma havia diluído o sacrifício em favor de uma assembleia reunida.

A assinatura dos cardeais dava peso institucional à crítica. Ottaviani, mesmo já idoso e praticamente cego, era uma figura de grande autoridade moral, por ter sido o guardião da fé durante décadas. Bacci, por sua vez, era respeitado por sua erudição e fidelidade à tradição.

Assim, o Breve Exame Crítico não podia ser ignorado. Tornou-se um símbolo da resistência litúrgica, ecoando as mesmas preocupações já manifestadas em 1967, mas agora com maior força e clareza.

4. A Reação de Paulo VI

O Papa Paulo VI recebeu o documento com seriedade, mas reagiu com firmeza. Em novembro de 1969, fez uma série de catequeses para defender a ortodoxia do novo rito. Nessas alocuções, reafirmou o caráter sacrificial da Missa e a presença real de Cristo, respondendo diretamente às acusações levantadas.

Paulo VI insistiu que a reforma não rompia com a tradição, mas a renovava. Segundo ele, o novo missal permanecia fiel à doutrina católica, embora a expressasse de modo mais adaptado ao homem moderno. O Papa se apresentava como garante da continuidade e da ortodoxia.

No entanto, o simples fato de que fosse necessário defender a Missa de acusações de protestantização já mostra a profundidade da crise. Nunca antes um rito promulgado por um papa havia sido contestado dessa forma dentro da própria Igreja.

As catequeses de Paulo VI foram acompanhadas de documentos oficiais que buscaram esclarecer ambiguidades e reforçar o sentido sacrificial do novo rito. Ainda assim, para muitos, o dano já estava feito: a reforma havia aberto uma ferida na unidade litúrgica da Igreja.

Essa reação papal, embora necessária, não conseguiu apagar as tensões. O Breve Exame Crítico continuaria a ser um ponto de referência para a crítica tradicionalista à reforma litúrgica.

Considerações Finais

O percurso que vai da Missa Normativa de 1967 ao Breve Exame Crítico de 1969 é revelador. Mostra como a reforma litúrgica, longe de ser um processo pacífico, foi marcada por resistências internas e por uma recepção conflituosa. A Igreja, que buscava atualização, acabou gerando divisão.

A Missa Normativa foi o ensaio geral: nela já estavam presentes os elementos que depois seriam criticados. O Sínodo revelou reservas, mas estas não foram plenamente levadas em conta. O resultado foi a promulgação de um missal que, embora legitimamente promulgado pelo Papa, deixou dúvidas teológicas sérias.

O Breve Exame Crítico cristalizou essas preocupações. Não se tratava apenas de saudosismo, mas de uma advertência quanto ao risco de obscurecer verdades centrais da fé. A reação de Paulo VI mostra que tais advertências não eram infundadas, pois exigiram resposta explícita do magistério.

Teologicamente, a crise de 1969 evidencia o princípio fundamental de que a liturgia não pode ser separada da doutrina. Alterar a forma de celebrar afeta inevitavelmente a percepção da fé. Por isso, a questão litúrgica permanece como um dos grandes desafios da Igreja pós-conciliar.

Hoje, olhando retrospectivamente, podemos ver que tanto a Missa Normativa quanto o Breve Exame Crítico são capítulos de uma mesma história: a luta da Igreja para equilibrar tradição e renovação. Uma luta ainda em aberto, pois a questão da liturgia continua a dividir corações e consciências no seio do catolicismo.

Por Ir. Alan Lucas de Lima, OTC
Carmelita Secular da Antiga Observância