A Missa Normativa de 1967: Ensaio, Debate e Consequências
Introdução
Em outubro de 1967, no coração da Cristandade, dentro da
Capela Sistina, foi celebrado um rito que, embora não fosse ainda oficial,
antecipava aquilo que se tornaria a liturgia ordinária da Igreja Católica a
partir de 1969. A chamada Missa Normativa foi apresentada como o esboço
do futuro, um protótipo cuidadosamente montado pelo Consilium ad exsequendam
Constitutionem de Sacra Liturgia, organismo encarregado de aplicar a
Constituição Sacrosanctum Concilium do Concílio Vaticano II. Essa
celebração não foi apenas um evento litúrgico; foi uma amostra de como a Igreja
estava redesenhando sua identidade na oração e no culto.
O momento era delicado. O Concílio havia terminado apenas
dois anos antes, e o entusiasmo reformador encontrava-se em tensão com a
prudência pastoral. Muitos bispos, padres e fiéis ainda se orientavam pela
liturgia tridentina, que durante séculos havia moldado a espiritualidade
católica. A súbita apresentação de um rito “normativo”, bastante diverso
daquele recebido por tradição, soava a muitos como uma mudança brusca, que
poderia gerar confusão e ruptura. A celebração de 1967 foi, portanto, não
apenas uma missa, mas um teste de unidade eclesial.
A divisão ficou clara nas reações. Enquanto parte dos Padres
Sinodais acolhia com entusiasmo a novidade, outra parte mostrava reservas
sérias, alertando para riscos teológicos e pastorais. O próprio Paulo VI,
embora profundamente envolvido no processo da reforma, não compareceu àquela
missa, oficialmente por motivo de saúde. Sua ausência foi interpretada por
alguns como um sinal de hesitação diante de uma transformação de tamanha
envergadura.
O ambiente era de expectativa, mas também de cautela. As
perguntas que pairavam no ar não eram meramente estéticas ou práticas, mas
teológicas: até que ponto se podia alterar a lex orandi sem pôr em
perigo a lex credendi? Seria legítimo abandonar elementos antigos, como
certas fórmulas da consagração ou o uso exclusivo do Cânon Romano, em nome de
uma maior participação e inteligibilidade? Essas questões ressoavam entre os
bispos e ainda hoje ecoam nas discussões sobre a liturgia.
Neste artigo, examinaremos em profundidade os principais
aspectos da Missa Normativa de 1967: sua apresentação e estrutura, as votações
e reações no Sínodo, as críticas levantadas contra o Consilium e,
finalmente, as implicações teológicas e pastorais desse episódio para a vida da
Igreja.
1. A Apresentação da Missa Normativa
A Missa Normativa foi celebrada no dia 24 de outubro de 1967
pelo padre Annibale Bugnini, secretário do Consilium. Estiveram
presentes cerca de 180 cardeais e bispos, reunidos para o primeiro Sínodo
pós-conciliar. O evento tinha caráter pedagógico: mostrar de forma prática como
ficaria a nova estrutura da celebração eucarística. O rito, segundo os relatos,
foi acompanhado de um grande coro e de canto popular, destacando já a ênfase na
participação da assembleia.
As mudanças apresentadas não eram pequenas. Já havia, desde
1964, modificações como a possibilidade de celebrar voltado para o povo, o uso
do vernáculo e a simplificação de alguns gestos. Mas a Missa Normativa
introduziu outras alterações mais radicais: uma liturgia da Palavra mais
extensa, a transformação do ofertório, a introdução de novas Orações
Eucarísticas além do Cânon Romano, e uma maior flexibilidade na escolha de
cantos e leituras. A própria estrutura do rito parecia menos rígida e mais
orientada à assembleia.
Era evidente o desejo de atualizar a liturgia, tornando-a
mais inteligível e acessível. A leitura da Escritura ganhou espaço, as orações
foram simplificadas, e gestos repetidos foram suprimidos. Tudo isso respondia à
intenção pastoral do Vaticano II de promover a participatio actuosa dos
fiéis. Contudo, essa ênfase na participação prática levantava o temor de uma
redução do mistério sacramental a um mero evento comunitário.
Outro ponto importante foi a experimentação com fórmulas
eucarísticas. A introdução da Oração Eucarística II, de caráter muito breve,
sinalizava uma ruptura com a exclusividade do Cânon Romano, usado de forma
ininterrupta por séculos. Para alguns Padres Sinodais, essa novidade parecia
uma adaptação aos padrões protestantes, mais que um desenvolvimento orgânico da
tradição católica.
Assim, a apresentação da Missa Normativa não foi apenas uma
demonstração técnica, mas uma provocação espiritual e teológica. Ela colocava
diante da Igreja a pergunta: até que ponto se pode mudar a forma sem abalar o
conteúdo? Até que ponto a busca por inteligibilidade não corre o risco de
esvaziar o senso de mistério?
2. As Votações e o Sínodo de 1967
Após a celebração e os debates, os Padres Sinodais foram
convidados a votar sobre questões específicas levantadas por Paulo VI. Havia
187 votantes, e a maioria qualificada exigida era de dois terços (124 votos). O
resultado mostrou que não havia consenso sobre a Missa Normativa.
Em relação à estrutura geral da Missa, apenas 71 votos foram
de aprovação plena (placet), contra 43 rejeições (non placet) e
62 aprovações condicionadas (placet juxta modum). Isso significa que a
proposta não alcançou nem de perto os dois terços necessários. O mesmo ocorreu
em relação à fórmula da consagração, onde apenas 93 aprovaram a supressão da
expressão Mysterium fidei. O padrão se repetiu em outras perguntas: a
resposta dos bispos era cautelosa, quando não francamente negativa.
O número elevado de votos juxta modum indica que
muitos bispos estavam dispostos a aceitar mudanças, mas somente sob sérias
condições e revisões. Isso desmonta a ideia de que a reforma litúrgica foi
recebida com unanimidade no episcopado. Pelo contrário, o Sínodo de 1967
revelou reservas profundas entre os pastores.
Poucos meses depois, o próprio Bugnini admitiria que “a
resposta dos bispos não foi unânime” e que os votos no Sínodo haviam sido, em
parte, contrários às expectativas do Consilium. Isso mostra que, embora
a máquina reformadora continuasse em movimento, não havia plena adesão dos
responsáveis pela Igreja.
Esse dado histórico é crucial: a reforma litúrgica, ao
contrário do que muitas vezes se apresenta, não foi o fruto pacífico de um
consenso, mas de uma decisão tomada apesar das divisões. O Sínodo de 1967 foi o
primeiro grande sinal dessa fratura interna.
3. As Críticas ao Consilium
Durante as sessões, várias vozes se levantaram contra o rumo
das reformas. Uma das mais fortes foi a do Cardeal Heenan, Arcebispo de
Westminster, que acusou o Consilium de tecnicismo, intelectualismo e
falta de senso pastoral. Para ele, a Missa Normativa era mais um exercício
acadêmico do que uma liturgia viva para o povo. Essa crítica ecoava uma
preocupação real: estaria a liturgia sendo reconstruída em laboratório, desconectada
da tradição e da fé concreta dos fiéis?
Outro momento importante foi a intervenção do Cardeal
Cicognani, Secretário de Estado. Ele pediu explicitamente o fim das mudanças
litúrgicas, alegando que os fiéis estavam confusos. Essa intervenção não era
marginal: tratava-se da voz mais próxima ao Papa, o que mostra que até mesmo
dentro da Cúria Romana havia forte preocupação com o rumo da reforma.
Os bispos de língua inglesa reuniram-se no English College
para formar uma posição comum. Esse gesto de articulação indica que não se
tratava de resistências isoladas, mas de um desconforto compartilhado. A
percepção era de que a liturgia estava sendo transformada em algo novo demais,
sem o devido cuidado pastoral.
As acusações de tecnicismo revelam algo mais profundo: a
percepção de que o Consilium estava guiado por especialistas, mas não
necessariamente pela sabedoria da Tradição. A liturgia sempre havia se
desenvolvido organicamente ao longo dos séculos; agora, parecia ser fruto de
comissões e experimentos. Essa mudança de método gerava suspeitas legítimas.
Assim, a crítica central não era contra a renovação em si,
mas contra o modo como ela estava sendo conduzida: de cima para baixo, de forma
abrupta, e com um espírito mais racionalista que contemplativo. Essa tensão
marcaria toda a recepção posterior da reforma.
4. Implicações Teológicas e Pastorais
O Sínodo de 1967 mostrou que a liturgia não é apenas uma
questão de forma, mas de conteúdo teológico e pastoral. A Missa Normativa, ao
alterar elementos centrais, levantava dúvidas sobre a clareza da doutrina
eucarística. Por exemplo, a supressão do Mysterium fidei na fórmula da
consagração foi vista por muitos como um enfraquecimento da afirmação da
presença real.
A introdução de novas Orações Eucarísticas também gerava
suspeitas. Se a Igreja havia rezado por séculos apenas o Cânon Romano, que
garantia continuidade e unidade, por que agora multiplicar fórmulas? A
brevidade da Oração Eucarística II, em especial, parecia incompatível com a
dignidade do mistério celebrado.
Do ponto de vista pastoral, havia ainda o risco da
fragmentação. Ao dar maior liberdade para adaptações, a Missa Normativa abria a
porta para uma pluralidade de práticas. Em vez de reforçar a unidade da Igreja
em torno de um rito comum, a reforma podia gerar diversidade excessiva,
prejudicando a identidade católica universal.
O Consilium justificava essas mudanças em nome da
participação ativa dos fiéis. Mas surge aqui a questão: participação significa
compreender racionalmente cada gesto, ou deixar-se mergulhar no mistério
sagrado? A tradição sempre privilegiou o aspecto contemplativo, enquanto a
reforma parecia inclinar-se ao pedagógico.
Assim, a Missa Normativa não era apenas um novo modo de
rezar, mas uma mudança de paradigma: do sacrifício oferecido a Deus para a
assembleia reunida em torno de uma refeição. Essa mudança de ênfase pastoral e
teológica seria objeto das críticas posteriores de teólogos e cardeais.
Considerações Finais
O episódio da Missa Normativa de 1967 é revelador porque
mostra a encruzilhada em que a Igreja se encontrava após o Concílio Vaticano
II. Entre a fidelidade à tradição e o desejo de atualização, entre a
necessidade pastoral e o risco da ruptura, a liturgia se tornou campo de
batalha de visões eclesiais distintas.
As votações e as críticas no Sínodo revelam que não havia
consenso. Muitos bispos estavam preocupados com a preservação da fé e da
piedade dos fiéis, enquanto outros se mostravam entusiasmados com as inovações.
Essa divisão não desapareceu; pelo contrário, marcou a vida litúrgica da Igreja
nas décadas seguintes.
A recepção morna e até crítica da Missa Normativa deveria
ter servido de alerta. No entanto, dois anos depois, Paulo VI aprovou o Novus
Ordo Missae, que consolidou muitas das mudanças apresentadas em 1967. O
resultado foi a abertura de uma crise litúrgica que persiste até hoje, com
grupos que permanecem apegados à liturgia tradicional e outros que defendem as
reformas como irreversíveis.
Do ponto de vista teológico, a Missa Normativa evidencia
como a liturgia não pode ser entendida apenas como forma, mas como expressão da
fé. Alterações profundas na forma repercutem na compreensão da doutrina. Isso
explica por que a reação de cardeais como Ottaviani e Bacci, em 1969, não foi
mero conservadorismo, mas uma defesa da clareza da fé católica.
Em última análise, a Missa Normativa é um espelho do dilema
moderno da Igreja: como dialogar com o mundo sem perder sua identidade? Como
adaptar-se pastoralmente sem renunciar à tradição recebida? Essas perguntas,
levantadas em 1967, ainda permanecem sem resposta definitiva, e continuam a
interpelar os católicos que buscam na liturgia não apenas inovação, mas
sobretudo a continuidade viva da fé da Igreja.