O que é sacrifício?


A palavra “sacrifício” pode significar várias coisas diferentes: um trabalho que nos custa, uma penitência que oferecemos a Deus na quaresma… Mas o sacrifício de que vamos falar neste artigo é ainda mais específico.

Apresentação 

A respeito do santo sacrifício da Missa, entendemos que ele seja necessário porque vimos surgir na internet, principalmente depois que o Papa Francisco publicou a Carta Apostólica (sob a forma de motu proprioTraditionis Custodes, um intenso debate a respeito dos dois missais: o de Paulo VI e de Pio V. 

O problema é que as pessoas têm discutido de maneira muito superficial temas como a validade dos missais, a oportunidade ou não deles, a superioridade de um em relação ao outro, e assim por diante. 

No fundo, vemos que as pessoas estão desencontradas. Por isso, para lançar um pouco de luz ao debate, gostaríamos de ir à substância da coisa e entender realmente a questão, o articulus stantis vel cadentis ecclesiæ — para usar uma expressão de Lutero —, aquilo “que faz a Igreja ficar de pé ou cair”.

O núcleo da discussão é o santo sacrifício da Missa, ou, a Missa entendida como sacrifício. Nestes artigos, portanto, vamos explicar o que é um sacrifício, qual é a visão dos revolucionários protestantes a respeito do sacrifício da Missa, e qual foi a reação católica do Concílio de Trento, dos santos e do Magistério posterior. O objetivo é entender o que é essencial e inegociável em relação ao santo sacrifício da Missa, e a partir daí nos posicionar, com os pés no chão, sobre a polêmica dos missais. 

Por que os protestantes odeiam a Santa Missa?

Para começo de conversa, vejamos por que a Missa Tridentina, e principalmente a Oração Eucarística do Cânon Romano, é inaceitável aos revolucionários protestantes. 

Vejamos o que Lutero diz em seus “Artigos de Esmalcalda”, que compõem a obra Konkordienbuch, ou “Livro da Concórdia”. No segundo artigo, escrito como preparação ao Concílio de Trento, o ex-monge apresenta aos príncipes protestantes a razão pela qual não seria possível negociar com os delegados papais enviados à Alemanha:

A missa deve ser considerada a maior e mais hedionda abominação do papado, pois que se opõe aberta e violentamente a este artigo principal, o artigo primeiro.

O primeiro artigo trata da sola fide, pilar da doutrina protestante a respeito da justificação [1].

Do princípio evocado no sola fide, conclui-se que qualquer obra realizada pelo homem não é capaz de merecer para ele a salvação. Sendo a Missa uma obra que propicia a justificação do homem, Lutero conclui que ela deve ser completamente rejeitada:

Não obstante, ela foi acima e antes de todas as outras idolatrias papais a mais elevada e admirada; por isso se afirma que esse sacrifício ou obra da missa, ainda que oferecido por um malandro ímpio e perdido, liberta os homens de seus pecados tanto em vida, como além, no purgatório [2]. 

Com base nisso ele conclui:

Mas isso [o sacrifício, a obra meritória], conforme dito acima, somente o Cordeiro de Deus o deve e tem de fazer. Também deste artigo não podemos nos afastar e ceder em algo, pois não o permite o primeiro artigo. 

Ou seja, para ele a Missa era completamente inaceitável. 

Em outros escritos, Lutero mostra claramente que o problema principal está no Ofertório e no Cânon Romano. Em 1519, dois anos após o lançamento das 95 teses (que aconteceu em 31 de outubro de 1517), Lutero já escreve contra a doutrina católica contida no Cânon da Missa (cf. Sermon von dem hochwirdigen SacramentWA 2, 751). E em 1521 escreve um de seus livros mais revolucionários, o De abroganda missa privata (cf. WA 8, 411-476; Von Missbrauch der MesseWA 8, 482-563), no qual rejeita claramente o Cânon — já que este não deixa dúvidas de que a Missa é um verdadeiro sacrifício oferecido a Deus.

Para deixarmos o assunto bem claro desde o início, vejamos o que ensina o Concílio de Trento (Sessão 22.ª) a respeito da Missa enquanto sacrifício:

Cân. 1. Se alguém disser que na Missa não se oferece a Deus verdadeiro e próprio sacrifício, ou que oferecer-se Cristo não é mais que dar-se-nos em alimento — seja excomungado (DH 1751). 

Fala-se exatamente de verum et proprium sacrificium. Ou seja, enquanto para Lutero a Missa deveria ser apenas um dom de Deus, um gaben, um simples testamento deixado por Cristo com o qual nós nada oferecemos a Deus (cf. Von den guten WerkenWA 6, 231), Trento condena essa ideia enfatizando que, sim, nós oferecemos a Deus o sacrifício de Cristo na Cruz.

Quer dizer, esse sacrifício de Cristo que oferecemos é a essência da Missa. Esta é a visão católica. Afirmar o contrário é perder comunhão com a Santa Igreja de Deus. Trata-se de uma realidade determinada por um concílio ecumênico. 

Ao longo deste artigo, estudaremos tudo isso com mais calma. O que fizemos até aqui foi estabelecer o status quæstionis inicial. 

O que é sacrifício?

Para avançarmos, precisamos agora responder a uma pergunta muito importante: afinal de contas, o que é um sacrifício? Sacrifício é uma oferta feita a Deus. Mas a palavra oferta, ou oblação, que são sinônimas, nem sempre expressa a ideia de sacrifício no seu sentido específico, técnico. Se não entendermos exatamente o que significa esse termo, não vamos compreender onde está a disputa entre os católicos e os protestantes. 

Os protestantes aceitam que a Missa seja um sacrifício no sentido amplo da palavra (lato sensu). Para eles, a Missa pode ser um “sacrifício de louvor”, um “sacrifício de ação de graças”; aliás, a própria palavra Eucaristia expressa isso: um sacrifício de ação de graças. O que eles não aceitam é que a Missa seja um sacrifício no sentido estrito da palavra (stricto sensu), oferecido por um sacerdote também no sentido estrito da palavra. 

É importante lembrar que as palavras podem variar em seus significados. Se eu bato no ombro de um amigo e falo: “Cara, você é um soldado!”, eu não estou usando a palavra soldado no seu sentido mais próprio. Estou querendo dizer simplesmente que o sujeito é uma pessoa que luta, que luta por algum ideal, que trabalha bastante etc. Soldado, no sentido estrito, é a pessoa que foi alistada, e depois foi realmente convocada, ingressou no serviço militar, e recebe para isso um soldo. Isso é especificamente um soldado. 

O Concílio de Trento afirma — atenção — que a Missa é um sacrifício verdadeiro e próprio, um sacrifício em sentido estrito. É muito diferente do sentido que empregamos em frases como: “Nossa! chegar aqui foi um sacrifício”. Nesse caso, a palavra sacrifício está sendo usada em sentido amplo. É o mesmo que acontece quando alguém diz que ofereceu sua dor de cabeça como sacrifício a Deus, que ofereceu sua vida como sacrifício. Nada disso é sacrifício no sentido técnico, verdadeiro e próprio. 

Para que haja um sacrifício em sentido estrito são necessários: 

  1. a oferta de algo sensível, material, feita a Deus; 
  2. um sacerdote no sentido técnico da palavra, ou seja, uma pessoa que age não somente em nome próprio, mas pelo povo; e 
  3. uma mudança na coisa oferecida.

Quanto à definição específica de sacerdote, podemos achá-la na própria Sagrada Escritura: “Todo pontífice, tomado dentre os homens, é constituído a favor dos homens naquelas coisas que se referem a Deus para que ofereça dons e sacrifícios pelos pecados” (Hb 5, 1). É portanto alguém que foi tomado dentre os homens (ἐξ ἀνθρώπων λαμβανόμενος, ex anthrōpōn lambanomenos), e foi constituído (καθίσταται, kathistatai) em favor dos homens (ὑπὲρ ἀνθρώπων, hyper anthrōpōn). Não existe sacrifício se não há um sacerdote verdadeiro. 

Neste ponto, ou seja, na questão do sacerdócio, começa a briga de Lutero, de Calvino, dos protestantes em geral. Lutero não admitia que a Missa fosse sacrifício propriamente dito porque, se o fizesse, teria de admitir que os padres, o Papa e os bispos são sacerdotes no sentido estrito da palavra — homens retirados do meio dos homens e constituídos diante de Deus para oferecer a Ele, em favor dos homens, dons e vítimas (δῶρά τε καὶ θυσίας, dōra te kai thysias). Lutero aceitava que isso tivesse ocorrido de uma vez para sempre no Calvário. Não admitia de maneira nenhuma que essa realidade se repetisse na Santa Missa.  

O sacrifício e a natureza humana

Precisamos aqui nos aprofundar na noção de sacrifício. Para Santo Tomás de Aquino, a realidade do sacrifício é uma coisa natural, é algo que está na natureza humana. Para o Doutor Angélico, um ser humano, para ser plenamente realizado, precisa, necessariamente, oferecer sacrifício a Deus. 

Por quê? Vamos entender isso refletindo sobre quatro elementos do nosso relacionamento com pessoas que nos são superiores. 

Pensemos em nossos pais. Você é uma criança e tem o seu relacionamento com o papai e a mamãe. Ora, a primeira coisa a se admitir é que papai e mamãe são superiores; é preciso portanto admitir a autoridade deles. Se a criança tem os pés no chão da realidade, tem de admitir que ela é menos e os pais são mais, que ela pode menos e eles podem mais. Tem de haver, por parte da criança, uma reverência para com os pais. É uma experiência fundamental. Trata-se do mandamento “honrar pai e mãe”.

Essa é a primeira coisa que se faz num sacrifício: o reconhecimento da superioridade de Deus. Quando reconhecemos nossos pais como superiores, nós os honramos. Quando reconhecemos que Deus é superior a nós, nós o adoramos, com culto de latria. Portanto, o primeiro feito de um sacrifício é a adoração a Deus. Quando entramos na Igreja e prostramo-nos diante de Deus em adoração, estamos reconhecendo a sua superioridade. 

Uma das finalidades do sacrifício é reconhecer isso. E temos de perceber que se trata de uma realidade natural. E é a coisa mais óbvia. É justo, como se diz no Prefácio da Missa, “é digno, justo, equitativo e salutar” — dignum et justum est æquum et salutare. Ora, é justo que adoremos a Deus porque temos de reconhecer que Deus é Deus. É natural que seja assim. 

Muita gente hoje repete: “Nós somos cristãos. Deus é um Deus de amor. Deus não quer sacrifícios”. Isso está errado. Ora, quando a Bíblia fala que Deus não quer sacrifícios, ela está se referindo ao sacrifício exterior isento de sacrifício interior. O problema é quando o sacerdote oferece o sacrifício de bodes e carneiros, mas não oferece junto o sacrifício interior do seu coração. Aí entramos num formalismo farisaico, numa exterioridade, pelo que claramente o sacrifício oferecido não agrada a Deus.

Quando Deus diz: “Misericórdia eu quero e não sacrifício” (Os 6, 6; Mt 9, 13), o sentido desta afirmação é: “Eu quero que o coração de vocês ofereça o sacrifício de misericórdia ao mesmo tempo que oferece o sacrifício externo”. Não se trata de Deus não querer sacrifício, pois o sacrifício faz parte da natureza das coisas, é necessário. O sacrifício é do ser das coisas. Se Deus é mais, nós o adoramos. E se o adoramos, é necessário, é essencial que haja um sacrifício de adoração.

Segundo: vamos pensar também que nossos pais dão coisas a nós: a vida, proteção, casa, comida, educação etc. Qual deve ser a nossa reação diante de quem nos dá coisas tão valiosas? Naturalmente, devemos ter gratidão, responder com ação de graças. Essa é a tônica do relacionamento de duas pessoas em níveis diferentes. Primeiro o inferior reconhece a superioridade do outro e com isso o honra. Segundo, ao receber as coisas do superior demonstra gratidão. Por isso, a gratidão é importante e faz parte da realidade cristã. É necessário que haja a ação de graças, a eucaristia, esse agradecimento a Deus. Tudo isso faz parte da natureza das coisas. 

Terceiro, o filho naturalmente pede coisas a seus pais. “Papai, tenho fome. Me dá comida”. “Papai, estou doente. Me dá remédio”. É assim. Há, portanto, nessa relação desigual de pai e filho, a realidade impetratória, ou seja, o pedido, a intercessão. 

Insisto: percebam que essas finalidades do sacrifício não são coisas retiradas dos manuais da escolástica. Basta abrirmos os olhos para ver que a realidade é assim. É o que deriva naturalmente do relacionamento de uma pessoa que é inferior com uma que é superior. Quem é inferior reconhece a inferioridade, quem é inferior agradece por receber coisas, quem é inferior pede as coisas necessárias. E tudo isso foi instituído por Deus. 

Vejamos ainda o quarto elemento.

O diabo introduziu no mundo uma coisa que não havia antes: o pecado. Por isso, se observarmos direito, no relacionamento do filho com os pais pode acontecer que o filho os ofenda. E se isso acontece, ele precisa reparar essa ofensa. Ele ofende a sua mãe, diz coisas horrorosas contra ela, mas, depois que passa a raiva, ele vai lá no jardim, pega uma rosa e diz: “Mamãe querida, me perdoe, eu estava com a cabeça quente, não sei onde eu estava com a cabeça naquele momento, eu não quero ofendê-la mais, receba essa rosa”. Com aspas, no sentido amplíssimo, no sentido poético da palavra, a mãe recebe esse “sacrifício”, essa oblação, essa rosa como um presente para reparar a ofensa feita pelo filho. 

Se é assim, também é verdade que nós, seres humanos, precisamos oferecer a Deus um sacrifício. Todo ser humano precisa oferecer a Deus um sacrifício de adoração, de ação de graças, de impetração e também de reparação pelos pecados cometidos. 

Essas quatro finalidades estão dentro da realidade chamada sacrifício, que diz respeito às virtudes da justiça e da religião. Trata-se de algo justo, digno, equitativo e salutar. E, repito: tem de ser assim, faz parte da coisa. Ou você acha normal o filho desprezar o pai e a mãe e não os honrar? Acha normal o filho não agradecer por ter recebido as coisas do pai e da mãe? Acha normal o filho nunca pedir nada? Acha normal ele ofender e não se desculpar? Se você não enxerga isso, você tem um sério problema na avaliação da realidade. 

A oferta

Voltemos, pois, à nossa definição de sacrifício, agora com as noções mais esclarecidas. O sacrifício é uma oferta, é uma oblação. Oferta e oblação são a mesma palavra em latim. Offerre e oblatum são formas do mesmo verbo: offero — eu ofereço; oblatum — eu ofereci. E o que é essa oferta? É trazer diante dos olhos de uma pessoa uma coisa, um dom. O que é o ofertório da Missa? O Ofertório é quando pegamos aqueles dons e os trazemos diante de Deus, colocando-os debaixo do seu olhar. O ofertório propriamente dito, no sentido estrito da palavra, acontece durante a Oração Eucarística.

Mas, para ser um sacrifício no sentido estrito da palavra, verdadeiro e próprio, essa coisa oferecida precisa ser sensível. Ora, quando rezamos, por exemplo, estamos oferecendo alguma coisa a Deus. Estamos oferecendo o nosso amor, a nossa vida. Quando fazemos a consagração do Tratado da Verdadeira Devoção, de São Luís Maria Grignion de Montfort, fazemos uma consagração à Sabedoria Encarnada, Jesus Cristo, através das mãos da Bem-aventurada Virgem Maria. Essas coisas são ofertas, uma oblação, um sacrifício no sentido amplo. Não no sentido estrito. Sacrifício no sentido estrito tem de ter algo sensível, material. Tem de ter uma vítima visível. 

E por que isso? Porque nós, seres humanos, somos corpo e alma. Uma coisa é o culto prestado pelos anjos, o culto de sacrifício totalmente espiritual. Nós, seres humanos, de carne e osso, precisamos oferecer algo sensível, porque é justamente pelas coisas visíveis que chegamos às invisíveis. Nós não somos anjos, nem temos, normalmente, a ciência infusa. A inteligência humana age per sensibilia, ou seja, pelas coisas sensíveis, pelas coisas concretas. Portanto, o nosso culto agradável a Deus precisa passar por esse lugar. 

Aliás, como é que nos chega a verdade de Jesus Cristo senão pelas coisas materiais e sensíveis? Agora mesmo você está aí, com celular nas mãos, diante do computador, essas coisas materiais, e por meio delas está recebendo um conhecimento imaterial, espiritual. Ora, o nosso culto a Deus precisa passar pelas coisas sensíveis também. Obviamente, você pode oferecer espiritualmente, mas para que tenha um verdadeiro sacrifício, é necessário que haja algo sensível, real, concreto. 

A transformação da coisa ofertada

Esse algo sensível precisa ser, de alguma forma, modificado, para que haja uma entrega verdadeira. Vamos supor: Moisés ofereceu a Deus o cordeiro pascal, que foi sacrificado, e participou daquela refeição, pegando aquilo para comer também. Este era um dos tipos de sacrifício na Antiga Aliança, o sacrifício pacífico [3]. Veja, aconteceu aí uma mudança na coisa oferecida: o animal morreu.

Pode ser, por outro lado, um sacrifício de expiação. Neste, você não pega um animal e o come, você simplesmente o pega e o destrói. É como acontece com o bode expiatório, sobre o qual você joga os pecados da comunidade e manda-o ao deserto para morrer. O bode tem de morrer para que haja uma expiação ritual do pecado. 

Pode haver ainda um sacrifício de entrega total a Deus, como o chamado holocausto, em que você pega a vítima e queima, destruindo-a por inteiro, numa entrega total.

Há vários tipos de sacrifícios conforme se queira enfatizar uma das finalidades que colocamos. Mas, em todos os casos, sempre precisa haver algo de material, de sensível, que é modificado [4]. 

Qualquer homem com religião tem esse conceito de sacrifício, essa realidade de oferecimento a Deus. 

Acontece, porém, que esse sacrifício externo, visível, para que seja autêntico, precisa ser acompanhado de um sacrifício interno, espiritual. Por isso São Paulo nos diz que precisamos oferecer “os ázimos da sinceridade” (1Cor 5, 8). Ou seja, não podemos oferecer com o “fermento dos fariseus”. Isso quer dizer o seguinte: se vai oferecer, ofereça de coração. Por que o sacrifício de Abel foi aceito e o de Caim não? Porque Abel ofereceu de coração e Caim ofereceu de má vontade. Deus vê o coração. 

Esse oferecimento, esse sacrifício que estamos fazendo, nos priva de algo. A gente pega um carneiro, mata o bicho e o oferece em holocausto. Mas se o oferecemos esperneando no coração, como que dizendo: “Não quero dar, não quero dar”; ou se, ao invés de pegar o melhor cordeiro do rebanho, oferecemos a ovelha manca e defeituosa, nós estamos dando de má vontade. Isto não é um sacrifício. Não estamos oferecendo como Melquisedec ofereceu o pão e o vinho; não estamos oferecendo esses “ázimos de sinceridade” de que fala São Paulo. 

Essa é a realidade do oferecimento do sacrifício. 

O legítimo oferente

Em suma: o sacrifício precisa ser uma oferta de algo sensível, acompanhada do oferecimento interno, feito a Deus. E este oferecimento a Deus é feito por um sacerdote, não por uma pessoa qualquer. Vejamos por quê.

Existe o sacerdócio no sentido amplo da palavra. No sentido amplo da palavra, todos os seres humanos são sacerdotes porque, como já dissemos e provamos, todos os seres humanos precisam oferecer a Deus. Inclusive os pagãos, que procuram Deus às apalpadelas, como disse São Paulo no Areópago de Atenas, precisam oferecer a Deus (cf. At 17, 15-34). Se são justos, se têm algum juízo, seguindo a sua reta consciência, adoram a Deus, fazem ação de graças, pedem os favores necessários e pedem perdão dos pecados.

Por outro lado, embora todos os seres humanos sejam sacerdotes em sentido amplo, nós não somos ilhas, não somos isolados. Existe a sociedade humana, existe a nação, existe o povo, existe a tribo, existe a família. E pelo fato de sermos seres sociais, nós precisamos uns dos outros. Nesse estado da organização social humana, alguém tem de ser deputado, alguém tem de ser tirado do meio do povo, como diz a Carta aos Hebreus, e constituído em favor do povo para oferecer sacrifícios públicos [5]. 

Ora, o verdadeiro e único e eterno sacerdote é Jesus Cristo. Foi Ele que, propter nos homines et propter nostram salutem (por nós, homens, e para a nossa salvação), desceu dos céus e, etiam pro nobis (também por nós), padeceu sob Pôncio Pilatos. Ele, ou seja, Deus, vendo que o ser humano não poderia salvar-se, se encarnou, criou para si um corpo e uma alma, “se fez homem”, ainda sendo Deus, e desse modo, recebeu do Pai a missão de oferecer o sacrifício em nome do povo, de todos nós. 

Jesus, por nós (ὑπὲρ ἡμῶν, hyper hēmon), veio e se ofereceu no Calvário. No Calvário, Jesus foi, ao mesmo tempo, o sacerdote e a vítima. Ele, tendo um corpo, ofereceu algo sensível. E esse corpo foi mudado porque Ele morreu. Além disso, Ele ofereceu-se com essas quatro finalidades: adoração, ação de graças, impetração e satisfação a Deus por nós. Este seu sacrifício foi suficientíssimo para a salvação de todos nós. 

Porém, esse sacerdote, na Última Ceia, quis que outros fossem instrumentos do seu sacerdócio, do seu único sacerdócio; quis que fossem instrumento da sua Pessoa. Alguém que é instrumento de outra pessoa se chama ministro. Por isso há sacerdotes ministros, pessoas que receberam o mandato de Jesus. Ele ordenou aos Doze Apóstolos: “Fazei isso”. Apenas eles foram ordenados, não a Virgem Maria, nem Madalena, que não estavam lá. Jesus lhes disse: Hoc facite in meam commemorationem, e hæc quotiescumque fecéritis, in mei memóriam faciétis, quando vocês fizerem isso, façam em memória de mim. Foi um mandato. Jesus lhes concedeu um poder para fazer com que esse único sacrifício que Ele realiza no Calvário seja atualizado. Não “repetido”, senão “atualizado”, “renovado”, de forma incruenta e sacramental na Missa.

Lutero aceita que haja um sacerdócio comum dos fiéis, um sacerdócio batismal, mas não um sacerdócio ministerial no sentido estrito da palavra. No sacerdócio em sentido estrito há a necessidade de se agir em nome do povo, tendo um mandato para agir em nome, no lugar do povo. Eis aí toda a controvérsia com os protestantes.

Quando falamos que a Missa é sacrifício, falamos também de um sacerdote ordenado que age em nome do sacerdote invisível. Este ministro ordenado é o instrumento visível de um sacerdote invisível que oferece um sacrifício — cruento na Cruz, dois mil anos atrás, e incruento no altar, atualizado através da consagração do pão e do vinho. Assim se renova o sacrifício da Cruz do mesmo sacerdote, da mesma vítima, apenas mudando a forma de oferecimento.

Conclusão

Temos aí o status quæstionis, para podermos debater com clareza. A controvérsia é esta: Lutero aceita que os pastores protestantes sejam sacerdotes do sacerdócio batismal, sacerdócio no sentido amplo, mas não no sentido verdadeiro e próprio; ele aceita que a Missa seja um sacrifício de louvor, um sacrifício de ação de graças etc., mas isso é sacrifício no sentido amplo e não no sentido verdadeiro e próprio, de algo material que é oferecido a Deus por um sacerdote deputado, em que há modificação na vítima sensível.

Se não enxergarmos isso com clareza, desde o início, não vamos enxergar onde está o debate. Com ideias claras, contudo, vamos ver o que é o santo sacrifício da Missa. 

Nos próximos artigos, estudaremos de verdade por que este é o articulus stantis vel cadentis ecclesiæ, o “artigo que faz a Igreja ficar de pé ou cair”. Porque, afinal, Ecclesia de Eucharistia, a Igreja é feita da Eucaristia, e se tirarmos a Eucaristia, a Igreja acaba. Exatamente por isso, o diabo manifesta a sua raiva contra a Missa, contra a Eucaristia, contra a renovação desse sacrifício do Calvário em cada sacerdote que sobe ao altar.

Continua

Nota

  1. Vale dizer que nós católicos também aceitamos que a justificação se dá pela fé, mas — e aqui está a discordância fundamental — não somente por ela. Além disso, o conceito de fé inventado por Lutero resume-se a uma confiança subjetiva, psicológica, uma espécie de crença no poder da mente. Isso não é de maneira nenhuma a fé verdadeira, a fé teologal.
  2. Quando Lutero critica o fato de que até um “malandro” possa verdadeiramente realizar o sacrifício da Missa, ele está atacando o conceito de ex opere operato. A Missa é ex opere operato, pois é operada por Cristo mesmo. É Cristo quem faz; o sacerdote é simplesmente um instrumento, um ministro. A Missa, portanto, não é ex opere operantis, isto é, não é eficaz pelos méritos do ministro, mas pela obra de Cristo. Atacando essa doutrina, Lutero retrocede a uma questão já resolvida séculos antes por Santo Agostinho no seu debate contra Donato. O donatismo dizia que um sacramento só seria válido se o ministro o celebrasse em estado de graça. 
  3. Os sacrifícios pacíficos são aqueles em que você pega uma parte do animal e come, porque está fazendo uma espécie de refeição com Deus, uma ceia com Deus. 
  4. É evidente que esses sacrifícios de animais foram abolidos, embora os vejamos ainda na sociedade brasileira, especialmente no candomblé. No candomblé, um “sacerdote”, para usar a categoria sociológica de sacerdote, ou pai de santo, ou mãe de santo, oferece um sacrifício, que tecnicamente eles chamam de “ebó”, popularmente chamado de “despacho”. Trata-se de um sacrifício em que você oferece uma vítima: por exemplo, o frango imolado. Há também os sacrifícios líquidos, chamados de libação. É comum ver nos bares o sujeito lançando no chão o primeiro gole da cachaça. É como uma oferta a um orixá. Por conta do sincretismo, dizem ser para o “santo”. Mas evidentemente não se trata de nenhum santo católico; é oferenda para um orixá. Seja como for, podemos entender como isso faz parte de um conceito universal, intrinsecamente humano. 
  5. Esta palavra “público”, aqui, não quer dizer o contrário de secreto. “Público” aqui vem de populicum ou populus, povo. O sacrifício deve ser oferecido pelo povo. Daí não haver fundamento na controvérsia de Lutero contra as Missas privadas, porque nenhuma Missa é estritamente privada. De fato, um padre sozinho celebrando Missa está oferecendo um sacrifício público porque o faz em nome do povo, pela Igreja inteira. Público não quer dizer que estamos na praça pública, mas simplesmente que estamos oferecendo em nome de todo o Corpo de Cristo. Para isso, no sentido específico da palavra sacrifício, verdadeiro e próprio, é necessário que haja um sacerdote delegado.