“Versus Orientem” & “Versus Populum”
A Missa celebrada “versus Orientem”, voltada simbolicamente para o Oriente, que simboliza o Senhor, ficando o celebrante e os fiéis voltados para a mesma direção, tem um significado teológico bem explicado pelo maior teólogo vivo da Igreja, o então Cardeal Joseph Ratzinger (Bento XVI):
“A orientação da oração comum aos padres e fiéis – cuja
forma simbólica era geralmente em direção ao Oriente, quer dizer ao sol
nascente – era concebida como um olhar voltado para o Senhor, para o verdadeiro
sol. Há na liturgia uma antecipação do seu retorno; padres e fiéis vão ao seu
encontro. Esta orientação da oração exprime o caráter teocêntrico da liturgia;
ela obedece à advertência: voltemo-nos para o Senhor!” (Joseph Ratzinger,
prefácio do livro “Tournés vers le Seigneur” de Mgr. Klaus Gamber). Mas,
“depois do Concílio (que, ele mesmo, não fala da ‘disposição voltada para o
povo’), em toda parte se construíram novos altares; a celebração orientada
versus populum aparece hoje como sendo o verdadeiro fruto da renovação operada
pelo Concílio Vaticano II.
De fato, essa é a consequência mais visível de uma
transformação que não significa apenas uma diferente arrumação exterior do
espaço litúrgico, mas implica também uma nova concepção da essência da liturgia
como refeição comunitária… Escutemos a propósito o que escreve Louis Bouyer: ‘A
ideia que uma celebração voltada para o povo teria podido ser uma celebração
primitiva, e em particular a da ceia eucarística, não tem outro fundamento
senão uma errônea concepção do que podia ser uma refeição na antiguidade,
cristã ou não. Em nenhuma refeição do início da era cristã o presidente de uma assembleia
de comensais estava de frente aos outros participantes. Estes estavam todos
sentados, ou reclinados, no lado oposto de uma mesa em forma de sigma… De
nenhuma parte, portanto, na antiguidade cristã, teria podido vir a idéia de se
colocar em frente para o povo para presidir uma refeição. O caráter comunitário
da refeição era ressaltado mesmo pela disposição contrária, isto é, pelo fato
de que todos os participantes se encontrassem do mesmo lado da mesa’.
A Eucaristia não pode certamente ser descrita com precisão
com os termos ‘refeição’ ou ‘banquete’. De fato, o Senhor indubitavelmente
instituiu a novidade do culto cristão no âmbito de um banquete pascal hebraico,
mas nos ordenou repetir esta novidade, não o banquete como tal. Por isso mesmo,
a novidade muito depressa se libertou de seu antigo contesto e encontrou uma
forma que lhe é própria, que tinha sido já antecipada pelo fato de que a
Eucaristia conduz à cruz e, portanto, à transformação do sacrifício do templo
na liturgia racional. Outra consequência é que a liturgia sinagogal da palavra
foi renovada e aprofundada cristãmente, permeada da memória da morte e
ressurreição de Cristo e, por isso mesmo, ficou fiel ao dever do ‘fazei isto’.
O conhecimento desse estado de coisas ficou certamente
obscurecido no curso da modernidade ou mesmo perdido, tanto no modo de se
construir as igrejas quanto no de celebrar a liturgia. Só assim se pode
explicar o fato de que a orientação comum do sacerdote e do povo tenha sido
etiquetada como ‘celebração voltada para a parede’ ou como ‘um mostrar as
costas para o povo’, etiqueta que, entretanto, se espalhou como sendo algo
absurdo e completamente inaceitável. Só assim se pode explicar que a ide ia do
banquete… se tornou então normativa para a celebração litúrgica dos cristãos.
Na verdade, assim se introduziu uma clericalização que nunca
tinha acontecido antes. Ora, de fato, o sacerdote – ou, o ‘presidente’, como se
prefere chamá-lo – se torna o verdadeiro e próprio ponto de referência de toda
a celebração. Tudo termina sobre ele. É a ele que é necessário olhar, é à sua
ação que se toma parte, é a ele que se responde; é a sua criatividade que
sustenta o conjunto da celebração. É ademais compreensível que se procure
depois reduzir esse papel… distribuindo numerosas atividades e confiando-as ã
‘criatividade’ dos grupos que preparam a liturgia, os quais querem e devem
antes de tudo ‘levar a si mesmos’. A atenção é sempre menos voltada para Deus e
é sempre mais importante o que fazem as pessoas que se encontram e que não
querem de fato submeter-se a um ‘esquema predisposto’. O sacerdote voltado para
o povo dá à comunidade o aspecto de um todo fechado em si mesmo. Ela não está
mais – na sua forma – aberta para frente e para o alto, mas se fecha sobre si
mesma. O ato pelo qual se voltavam todos para o Oriente não era ‘celebração
voltada para a parede’, não significava que o sacerdote ‘voltava as costas ao
povo’: ele não era, pois, considerado tão importante. De fato, como na sinagoga
todos olhavam juntos para Jerusalém, assim aqui se volviam juntos ‘para o
Senhor’.
Para usar a expressão de um dos padres da constituição
litúrgica do Concílio Vaticano II, J. A. Jungmann, trata-se antes de uma mesma orientação
do sacerdote e do povo, que sabiam estar caminhando juntos para o Senhor. Eles
não se fechavam em círculo, não se olhavam reciprocamente, mas, como povo de
Deus a caminho, estão de partida para o Oriente, para Cristo que avança e que
vem ao seu encontro… A orientação comum para o Oriente durante o Cânon continua
essencial. Não se trata de um elemento acidental da liturgia. Não é importante
o olhar voltado para o sacerdote, mas a adoração comum, o andar ao encontro d’Aquele
que vem. A essência do evento não se exprime pelo círculo fechado em si mesmo,
mas a pertença comum, que se exprime na direção comum” (Ratzinger, Introduzione
allo spirito della Liturgia, Edizioni San Paolo 2001, p. 73-74, 76-77).
Artigo extraído do livro: RIFAN, Dom Fernando Arêas. Considerações
sobre as formas do Rito Romano da Santa Missa, pags. 114-116.