A doutrina protestante sobre a Missa
“Sacrilégio” para Calvino,
“abominação” para Lutero: eis como os protestantes viam a Santa Missa desde o
princípio. Mas o que explica esse verdadeiro ódio ao culto católico? Por que o
santo sacrifício do altar é inaceitável para os protestantes?
Apresentação
Estamos vendo a respeito da Missa
como sacrifício e a batalha dos missais. Como já dissemos, na internet o
pessoal fica discutindo sobre os vários missais, especialmente o Missal de Pio
V e o Missal de Paulo VI. Ora, o Papa Bento XVI fez um Motu Proprio permitindo
o rito antigo, mas o Papa Francisco fez um outro restringindo-o. Afinal de
contas, o que está por trás desse debate?
Com este artigo, não gostaria de
fechar posições, mas colocar, com clareza, o status quæstionis, ou
seja, esclarecer o que está realmente sendo debatido.
Quer dizer, não é uma questão de
latim ou não latim, ou uma questão de Missa orientada ou não orientada, de
altar colado na parede ou altar de frente para o povo. Nada disso. O que está
realmente em questão aqui é a Missa como sacrifício. E, como dissemos no artigo
anterior, se conseguirmos entender o centro da questão, conseguimos nos
posicionar quanto à situação litúrgica, conseguimos dialogar quanto àquilo que
é melhor conforme a legislação atual e conforme as possibilidades de cada
paróquia.
Em uma sentença: trata-se de
enxergarmos verdadeiramente a Missa como sacrifício. Este é o grande ponto. E
isto porque, como já assinalamos, existe dentro da própria Igreja Católica um
movimento de protestantização da Missa, uma visão que, como a dos
revolucionários protestantes lá do século XVI, nega que a Missa seja o
sacrifício de Cristo na Cruz.
A posição de Lutero
1. A “abominação” da Missa
papal. — Vamos entender a posição de Lutero e de Calvino, uma posição
de quem não discorda, por assim dizer, delicadamente. Traduzi aqui uma homilia
de Lutero, feita no 1.º Domingo do Advento, quando ele já era protestante e já
não celebrava mais a Missa (WA 15, 774). Diz assim:
Eu digo, eu declaro que todos os
bordéis, os quais Deus realmente proibiu, todo homicídio culposo, roubo,
assassinato, adultério, não são tão prejudiciais quanto essa
abominação da missa papista (grifos nossos).
Em alemão, a afirmação destacada
está assim: nicht so schädlich sind wie dieser Greuel der päpstlichen
Messe. Greuel é abominação. Ele está dizendo que, se você
cometer um assassinato, roubar, abrir um prostíbulo etc., tudo isso “não é tão
prejudicial” (schädlich), “não faz tanto mal” quanto a “abominação” (greuel)
da Missa. Em outras palavras: abra um prostíbulo, mas não celebre uma Missa
católica.
É esse o tipo de posição veemente
de Lutero. Ele realmente achava que a Missa é uma blasfêmia. E, de fato, ele
tomou essa posição desde cedo, de tal forma que a história do
triunfo da revolução protestante é a história da abolição da Missa [1].
Por exemplo: logo no início da
revolução, quando Lutero ainda estava foragido e escondido num castelo, ele
escreveu aos seus confrades agostinianos, de Wittenberg, persuadindo-os de que
não deveriam celebrar as Missas privadas.
Lutero começou a dizer que a
Missa era somente um “sacrifício de louvor”, um culto; logo, não havia sentido
celebrá-la sem ninguém. Seria como falar sozinho [2]. Para Lutero, a razão de ser
da celebração é renovar nas pessoas aqueles “bons sentimentos de fé”,
sentimentos que nos dão a confiança de que Deus nos deixou uma justificação,
um testamento.
Para o protestante, a ceia não é
um sacrifício, é um dom de Deus, algo que Ele nos deixou. Não é, de maneira
nenhuma, algo que nós oferecemos. Mas na Santa Missa, como nós católicos a
celebramos, temos as duas coisas. A Missa é, para usar a linguagem da liturgia,
um admirabile commercium, uma permuta admirável, miraculosa, entre
Deus e os homens. Deus nos dá o sacrifício com o qual nós o louvamos.
Por essa razão, para nós,
católicos, faz sentido a Missa ser celebrada por um padre sozinho ou
acompanhado apenas de um coroinha. Afinal, o padre está oferecendo algo
agradável a Deus, algo que tem sentido em si mesmo, o único sacrifício de
Cristo renovado no altar.
2. A luta contra a “Missa
silenciosa”. — Seja como for, Lutero começou a convencer os frades a
não mais celebrar Missas privadas. A partir disso, voltou-se contra o Cânon
Romano, aquilo que hoje, na reforma de Paulo VI, se chama de Oração Eucarística
I, a oração eucarística que o rito romano manteve durante séculos [3].
O próprio Lutero escreveu um
panfleto contra a “abominação” da Missa “silenciosa” (stille, em
alemão), chamada pelos papistas de Cânon. E isto porque a Oração Eucarística
era toda pronunciada em silêncio. Ora, se a Missa é um culto para que as
pessoas ouçam aquelas palavras, tenham bons sentimentos e então ofereçam a Deus
um “sacrifício de louvor”, de ação de graças, de adoração etc., se é assim, não
teria sentido o padre no altar rezando em silêncio.
No entanto, na Missa católica,
durante séculos e séculos, o Cânon foi pronunciado em silêncio. O padre
oferecia o sacrifício apenas mexendo os lábios, pronunciando com um pouco mais
de volume na hora da consagração, o suficiente para se ouvir.
Mas Lutero, nesse panfleto que
fez contra “a abominação da missa silenciosa”, analisa o Cânon Romano e diz que
se trata de “uma coisa horrorosa”, que “o padre vai e apresenta aquele pedaço
de pão e aquele vinho como se fosse um sacrifício”, que ele “traça o sinal da
Cruz e diz: Hæc dona, hæc munera, hæc sancta sacrificia illibata”.
Perguntava Lutero: “Como esse é um santo sacrifício ilibado? O santo sacrifício
ilibado é o que Cristo ofereceu na cruz”, dizia, “não esse pão e esse vinho que
estão no altar do padre”.
Lutero abominava essa linguagem
do Cânon. E abominava que o padre insistisse, depois da consagração, “chamando
aquele pão e aquele vinho de ‘hóstia’”. Para nós, na linguagem
corriqueira, hóstia é aquele pãozinho guardado no armário da
sacristia. Mas, em latim, hóstia quer dizer vítima; é a vítima do sacrifício da
Missa. Por isso, o padre reza: Hostiam puram, Hostiam sanctam, Hostiam
immaculatam, panem sanctum vitae aeternae, et Calicem salutis perpetuae,
“hóstia pura, hóstia santa, hóstia imaculada, pão santo da vida eterna e cálice
da saúde perpétua”.
Lutero e os demais
revolucionários protestantes fizeram um cavalo de batalha por toda a vida
contra a Oração Eucarística I, justamente porque nesta oração, assim como no
Ofertório, não há como fugir do fato de que a Missa é a renovação do sacrifício
de Cristo na Cruz, um sacrifício verdadeiramente oferecido, no sentido estrito
da palavra, conforme vimos na aula passada [4].
Em resumo, as duas coisas que
Lutero e os demais revolucionários protestantes achavam e acham o fim da picada
são: o Ofertório e o Cânon Romano. Essas são as duas “desgraças” da
Missa católica para eles. E isto porque, em primeiro lugar, os padres rezavam
em silêncio; e, em segundo lugar, porque os padres pretendiam oferecer “um novo
sacrifício”, conforme entendia Lutero, “desprezando o sacrifício de Cristo na
cruz”. Essa é a discórdia.
O sacrifício de Cristo segundo a Carta aos Hebreus
Para firmarem posição, os
protestantes se fundamentam, sobretudo, na Carta aos Hebreus, que
fala do sacrifício de Cristo com mais clareza. Na Carta se insiste várias vezes
que Jesus ofereceu o seu sacrifício uma vez só. O texto recorda, citando o
Salmo 39, que Jesus, ao entrar no mundo no ventre da Virgem Maria, cumpriu a
vontade de Deus Pai. Por isso, Ele diz: “Não quiseste sacrifício nem oblação,
mas formaste-me um corpo” (Hb 10, 5). Com isso, Jesus veio para pôr
fim aos holocaustos do Antigo Testamento e oferecer um novo holocausto, o novo
sacrifício do seu corpo. Dito de outro modo: Deus formou um corpo para si
mesmo, a segunda Pessoa da Santíssima Trindade, de modo que, morrendo na Cruz,
oferecesse o sacrifício definitivo.
O versículo 10, do mesmo capítulo
10, insiste: “Por esta vontade somos santificados mediante a oblação do corpo
de Jesus Cristo feita uma vez”.
Em português, “uma vez” não diz
grande coisa, mas, no original grego, está lá ἐφάπαξ (ephapax), que é
uma palavra forte: quer dizer “uma vez só”, “uma única vez”, “uma e tão somente
uma”. Jesus diz que somos santificados διὰ τῆς προσφορᾶς (dia tēs prosphoras),
isto é, “pelo oferecimento”, “pela oblação”, τοῦ σώματος Ἰησοῦ Χριστοῦ ἐφάπαξ (tou
sōmatos Iēsou Christou ephapax) “do corpo de Cristo, uma vez só”.
Os protestantes, diante disso,
afirmam sobre o sacrifício de Cristo: “É uma vez só. O que esses católicos
querem agora? Todos os dias precisa oferecer novamente Jesus? Oferece, oferece,
oferece... O que vocês estão fazendo é uma abominação. Vocês pretendem matar
Jesus novamente todos os dias na missa? Para com isso! O sacrifício de Cristo
no Calvário foi suficiente e vocês ficam matando Jesus outra vez!”
O mesmo capítulo 10 de Hebreus reafirma
essa realidade em outros momentos, como no versículo 12: “Tendo oferecido uma
só hóstia pelos pecados…” ou seja, uma só vítima pelos pecados, μίαν ὑπὲρ ἁμαρτιῶν
(mian hyper hamartiōn), em grego. Depois, no versículo 14, ele diz
novamente: μιᾷ (mia), quer dizer “uma”, γὰρ προσφορᾷ (gar prosphora),
“uma só oferta”, uma só oblação. O autor martela: “Uma só vez”, “uma só
vez”.
A carta assinala aqui um
contraste com os sacrifícios do Antigo Testamento, do Templo de Jerusalém, em
que os sacerdotes tinham de oferecer reiteradamente sacrifícios e mais
sacrifícios. Havia sacrifícios pacíficos, sacrifícios de expiação, holocaustos,
várias formas de sacrifício.
Portanto, nós, católicos, não
estamos fazendo outro sacrifício, não estamos desprezando o sacrifício de
Cristo na Cruz. Estamos em perfeito acordo com os protestantes neste ponto: o
sacrifício que nos salva é único; é um só, não dois. Não é necessário discutir
algo em que já estamos de acordo.
O problema é que eles, os
protestantes, não ouvem. Não adianta você dizer que “não está
matando Jesus de novo”, que há um único sacrifício, um só, agora renovado de um
modo diferente, sacramentalmente. Não adianta explicar: na Cruz
houve o sacrifício cruento, com sofrimento; agora, Jesus não sofre mais, pois o
sacrifício é oferecido de outra forma, de forma sacramental. Eles não querem
ouvir. Eles insistem que matamos Cristo de novo. No final das contas, o que
eles fazem é a tal da teologia panfletária. A ideia é fazer um panfleto para
escandalizar e abalar a fé dos católicos. Por isso não é possível um debate.
A posição de Calvino
Para dizer que não é uma coisa só
de Lutero (os luteranos aqui no Brasil são poucos, aqui a maior parte dos
protestantes é de matriz calvinista), cito também as Institutas da
Religião Cristã, de Calvino. Num dos capítulos finais, ele fala “da missa
papal”, a Missa católica, como um “sacrilégio pelo qual a ceia de Cristo foi
não apenas profanada, mas destruída por completo” (quo sacrilegio non modo
profanata fuit coena Christi sed in nihilum redacta) [5]. E mais:
Com essas invenções e outras
semelhantes, Satanás, como que espalhando suas trevas, esforçou-se em ofuscar e
obscurecer a santa ceia de Cristo para que nem mesmo sua pureza fosse mantida
na Igreja (v. II, l. 4, c. 18).
O que Satanás fez, segundo
Calvino, foi fazer “crer que a missa é sacrifício e oferenda para alcançar a
remissão dos pecados” (ut crederet missam sacrificium
et oblationem esse ad impetrandam
peccatorum remissionem).
Aqui está a desgraça para eles: a
Missa entendida como sacrifício e oferenda. Esse é o ponto da discórdia para
luteranos, para calvinistas, para qualquer tipo de protestante. Eles nunca irão
aceitar que a Missa seja um verdadeiro sacrifício.
Quero bater nesta tecla: a Missa
é sacrifício no sentido estrito da palavra. Conforme já dito, eles aceitam a
Missa, no máximo, como um sacrifício de louvor, no sentido amplo. Que exista um
sacerdote delegado, que está lá em nome do povo, como diz a Carta aos
Hebreus (5, 1), isso eles não aceitam. E que o padre suba ao altar
para oferecer um sacrifício visível, a hóstia, sinal de um sacrifício
invisível, o sacrifício de Cristo na Cruz, eles também não aceitam.
Por isso, Calvino exortava seus
leitores a “combater a opinião com que o anticristo de Roma e os seus profetas
embriagaram o mundo”; pois a visão que temos de que a Missa é uma obra
meritória, através da qual somos reconciliados com Deus, é para ele “uma
blasfêmia intolerável e uma afronta a Cristo” (ibid.).
Embora Calvino seja um pouco mais
comportado que Lutero em matéria de linguagem, podemos ver que a coisa é
igualmente trágica.
A definição do Concílio de Trento
O Concílio de Trento, por outro
lado, respondeu aos dois dizendo que não há dois sacrifícios.
Essa é a posição oficial da Igreja. Isso está declarado dogmaticamente. O
Concílio de Trento (Sessão 22.ª) o diz:
Com efeito, uma só e mesma é a
vítima [Una enim eademque est hostia], pois quem agora se oferece pelo
ministério dos sacerdotes é o mesmo que então se ofereceu na cruz; só o modo de
oferecer é diferente (DH 1743).
Em outras palavras, a vítima é a
mesma, é a mesma pessoa: a Pessoa divina que se encarnou e que se ofereceu na
Cruz, agora se oferece pelo ministério do sacerdote, do padre, no altar. “Só o
modo de oferecer é diferente”: na Missa, é sem derramamento de sangue.
Essa é a posição dogmática da
Igreja Católica. Não é o Padre Paulo falando. Isso foi respondido há 500 anos.
A Igreja já disse: é uma só. O que acontece é que os protestantes não vão
aceitar de jeito nenhum que exista um poder sacerdotal dentro da Igreja
Católica. Aqui está a grande controvérsia.
Por onde vai o debate
Até aqui fizemos uma narrativa
histórica: o que Lutero e Calvino disseram, o que afirma a Bíblia e qual foi a
posição dogmática estabelecida pelo Concílio de Trento.
Agora, por onde vai o debate?
Ora, a “batalha dos dois missais” se dá exatamente neste campo: (1) existe um
missal, o antigo, que deixa mais claro que o sacerdote está oferecendo um
sacrifício; e (2) existe um outro missal, o Missal reformado de Paulo VI, que
não deixa essa clareza toda, que exige portanto um esforço do padre (esforço
esse que os padres precisam ser educados para fazer) para celebrar a Missa com
o espírito de quem está oferecendo um sacrifício, que é o que a Igreja sempre
fez em dois mil anos.
Esse é o debate, é isso que
estamos tentando esclarecer.
Uma nova fé, uma nova religião
Agora vamos pensar.
Quero que vocês enxerguem a
coisa, pois não adianta eu fazer um curso simplesmente para dizer ou repetir
aquilo que os livros já dizem. Eu quero que vocês façam um ato de
inteligência e enxerguem onde está o problema.
Lutero era um rapaz, um jovem
sacerdote, que infelizmente desesperou da santidade. Ele tinha péssimos
confessores e diretores espirituais. Aqueles agostinianos de Wittenberg eram
uma espécie de desvio da Ordem, uma corrente meio doida, aloprada. Eles achavam
— vejam o absurdo — que existia pecado sem consentimento. Imaginem a desgraça:
eles achavam que bastava você ter uma sugestão de pecado e, pronto, já pecou.
Eles pegaram o conceito de tentação e transformaram em pecado, o conceito de
concupiscência e transformaram em pecado.
Por isso, por conta daqueles
agostinianos, antes mesmo da revolta de Lutero já havia uma desgraça por lá.
Staupitz era o confessor de Lutero e ficava ouvindo a confissão dele, do então
padre Martinho, durante seis horas seguidas. Isto porque Lutero nunca se
contentava, vivia com aquele escrúpulo, com aquela ânsia neurótica de falar até
o último sentimento. E, por causa da gente doida que o aconselhava, ele nunca
se sentia suficientemente livre do pecado.
Nós, católicos, sabemos que não é
assim, que existe o sentimento, existe a tentação, e é somente quando você
percebe a advertência: “Opa, isso está errado”, que, dali para a frente, pode
ou não pecar com consentimento. O fato é que Lutero, atormentado, inventou um
jeito de sair dessa sua neurose: inventou um novo conceito de fé [6]. Lutero
entendia a fé como uma “confiança subjetiva”, um autoconvencimento de que se
está salvo por Cristo e ponto final.
Ora, quando Lutero fala que somos
salvos pela fé, nós, católicos, não podemos estar de acordo, embora a afirmação
seja verdadeira. Nós somos salvos pela fé, sem dúvida, mas não por essa fé que
Lutero inventou. Nós somos salvos porque a fé teologal é o instrumento através
do qual a salvação entra na nossa vida.
De fato, não é possível ser salvo
sem fé. Sem fé não é possível agradar a Deus. Mas não é dessa fé teologal que
falava o monge revolucionário. Quando Lutero ainda não tinha sido excomungado,
o Cardeal Caetano, que o julgou, percebeu imediatamente o problema. O Cardeal,
que não era nada diplomático, que achava suficiente dar uns berros com o frade
petulante, disse-lhe: “Com esse conceito de fé, você inventou uma nova
religião, isso não é o cristianismo”.
A religião que Lutero inventou,
com essa fé fiducial, subjetiva, uma espécie de autoconvencimento,
apaziguava as angústias do seu coração. Cristo salva todo o mundo. Basta ter fé
e Ele nos justifica.
E o que é essa justificação, essa
salvação que Cristo nos dá?
Para Lutero, a justificação era
uma questão judicial, uma justificação forense. Funciona assim: você é pecador,
desordenado, safado, sem-vergonha. Então o Cristo escreve, digamos assim, uma
quitação, uma ficção jurídica, e a partir daí você não deve mais nada, pode entrar
no Céu. Basta acreditar nisso e pronto: você está salvo. Você continua pecador,
continua sem-vergonha, continua egoísta, não há nenhuma modificação em você,
mas não tem problema. Você faz de conta que está quitada a dívida e, voilà,
está resolvida a história. Na Cruz, Cristo pagou a sua dívida e a pregou na
Cruz — para usarmos a analogia de São Paulo (cf. Cl 2, 14).
Feito: você está perdoado.
É claro que com esse conceito de
justificação não tem sentido celebrar Missa. Porque, se é simplesmente uma questão
de liquidação, uma vez quitada a dívida, para que ficar repetindo a quitação?
Imaginem que eu tenho uma dívida no cartório. Vou lá, faço a quitação e, no dia
seguinte, e no próximo, e no outro, volto para quitar de novo, e de novo. Não
faz o menor sentido. O atendente do cartório vai dizer, com razão, que sou
louco.
Só que nós, católicos, sabemos
que não é isso, que existem duas coisas que os luteranos não enxergam. Primeiro,
a justificação não é somente isso. Há uma modificação na alma da pessoa. Segundo:
estar justificado não é a mesma coisa que ficar santo.
Sendo assim, por que eu preciso
renovar o sacrifício da Missa?
Entendamos: não é a Missa que
justifica as pessoas, as pessoas são justificadas pela fé e pelo sacramento da
fé que é o Batismo. E uma vez que o Batismo lava os seus pecados, você está
salvo. Mas não se trata simplesmente de uma salvação forense, jurídica. É uma
salvação pois Deus colocou uma semente de salvação na sua alma. E se você
morrer agora, está salvo.
Você creu em Jesus Cristo,
professou a sua fé, foi batizado, seus pecados foram perdoados e você está
salvo. Mas, e se caiu outra vez em pecado mortal? Arrependa-se, confesse, e aí
você volta ao estado de graça. Estando em estado de graça, caso morra, será
salvo. Mas você ainda não ficou santo, há trabalho pela frente.
Porque veja: Deus é Deus de amor.
Se Deus é Deus de amor e você é filho de Deus, você precisa amar. Lutero
transformou o cristianismo, que é a religião do amor, na religião da quitação
jurídica. Você é filho de Deus, mas não o ama. Você pode até dizer: “Mas eu não
dou conta de amar, eu sou pecador, eu sou sem-vergonha”. Entendo que os
protestantes enxerguem isso dentro deles, é uma dificuldade que existe. Mas se
essa dificuldade existe, existem também caminhos para se santificar.
Lutero não acreditava na
santidade. Ele olhava a narrativa dos santos e achava que era tudo invenção. Só
que acontece o seguinte: a santidade existe, e a santidade existe não porque eu
ouvi dizer dos santos medievais. Existe porque eu conheço pessoas santas,
porque eu já vi isso acontecer na vida das pessoas. Não é uma coisa comum, você
não encontra um santo em cada esquina. Mas isso acontece realmente. Essa
transformação interior realmente acontece, e os fiéis católicos, caso tenham um
bom diretor espiritual, fazem um caminho de santificação.
Um caminho de santificação
Nesse caminho de santificação é
que a Missa tem sentido. Ou seja, a renovação do sacrifício de Cristo na Cruz
realmente é para nós fonte de santificação. O sacrifício da Missa é oferecido,
ele remite a pena das almas que estão no Purgatório, almas que estavam salvas,
mas não eram santas o suficiente. E a Missa tem, de fato, o poder de redimir as
penas temporais dos vivos que dela participam. Agora, claro, como em qualquer
caminho de santificação, isso depende de como a pessoa recebe aquilo, não basta
estar de corpo presente na Missa.
Daí você pode dizer: “Está vendo,
é exatamente como Lutero falou, não é ex opere operato, é ex
opere operantis. Isto é, depende do ato de fé de cada um, a Missa em si não
tem nada, é uma coisa subjetiva, Lutero tinha razão”.
Errado. Tinha razão nenhuma,
zero.
Façamos uma comparação: quando
você ingere um suplemento para fazer exercício, a comida tem ou não tem a
energia, as proteínas, as vitaminas, ex opere operato, ou seja,
automaticamente, que você precisa? Sim. Só que, se você tiver um problema no
intestino, se o seu duodeno estiver inflamado, você não consegue absorver
aquilo tudo. Logo, depende também de você.
A Missa tem um valor objetivo, só
que depende também do fiel. Em outras palavras, se você for à Missa, participar
da Missa e receber a graça, ou se um padre celebrar a Missa colocando a sua
intenção, ainda que você esteja em casa, se ele oferece pelos vivos e pelos
mortos, isso tem um valor, um valor objetivo.
Portanto, nesse exato momento há
uma Missa sendo oferecida em algum lugar no mundo, e isso é uma fonte de graça
para a humanidade, mesmo que eu não esteja lá e mesmo que eu não tenha
comungado. As almas do Purgatório não impõe óbice nenhum, então recebem as
graças. Mas nós, os vivos, precisamos fazer alguma coisa para receber os frutos
da Santa Missa.
Lutero, Calvino e os revoltosos
protestantes, contudo, olham para a Missa e dizem que aquilo é simplesmente um
dom de Deus para nós. Por isso julgam não ser necessário celebrar novamente o
sacrifício de Cristo na Cruz. E batem na tecla: já foi oferecido ἐφάπαξ (ephapax),
“de uma vez por todas”. Como uma quitação judicial definitiva.
Nós, católicos, por outro lado,
cremos que essa redenção objetiva aconteceu lá na Cruz, há
dois mil anos, mas que ela precisa ser apropriada, o que chamamos de redenção
subjetiva. Em outras palavras: o remédio está aí; agora precisamos
tomá-lo.
E como nos apropriamos dessa
redenção, desse remédio? Pela fé, pelos sacramentos da fé como o Batismo, a
Confissão, etc., que me colocam no estado de justificação. Mas, também, pelo
crescimento dessa semente que é instalada no dia do batismo e que é restaurada
na confissão. Não é simplesmente uma coisa cartorial. Existe uma transformação
da alma. A alma precisa amar e realizar obras divinas como os santos. E para
isso não há caminho melhor do que a Eucaristia.
Veremos mais tarde toda a riqueza
da Eucaristia: o que se dá quando adoramos o Cristo no sacrário, quando
comungamos na Missa. Mas veremos, especialmente, o valor da Santa Missa
enquanto renovação, atualização do único sacrifício de Cristo na Cruz.
Por ora, estamos mostrando a
diferença entre nós, católicos, e os protestantes. Os pobrezinhos dos
protestantes acham que são salvos somente por essa fé inventada por Lutero,
pela confiança numa quitação cartorial assinada por Jesus. Na cabeça deles,
você está condenado a pecar e pecar, a vida inteira, mas, para ser salvo, basta
confiar na salvação, porque Jesus é “bonzinho”.
Consegue enxergar como essa visão
está dentro da Igreja Católica? Por exemplo: durante o Ano da
Misericórdia, proclamado pelo Papa Francisco, os pregadores diziam: “Deus
já perdoou tudo!” É a quitação cartorial. Deus já perdoou tudo e você continua
sendo o sem-vergonha de sempre. Isso é coisa de Lutero, que dizia: Pecca
fortiter, sed crede fortius, “peca com força, mas crê com mais força
ainda”.
Não podemos rejeitar o
patrimônio, a riqueza espiritual da Santa Igreja de Deus que nos quer santos.
Há muita gente sem-vergonha na história da Igreja Católica, é evidente. Aliás,
ainda tem, ainda agora, na hierarquia, fora da hierarquia, onde você quiser.
Sem-vergonhice é o que não falta. Mas a Igreja é santa porque ela nos dá os
meios da santidade. É essa a grande diferença entre a visão distorcida e pobre,
paupérrima, dos protestantes, e as riquezas dos tesouros da Santa Igreja de
Deus.
Nota
- Foram feitos estudos estatísticos para ver como,
sociologicamente, se conseguiu implantar a revolução protestante. E o
critério adotado para verificar o sucesso do protestantismo numa cidade
era se ali havia parado a celebração da Missa. Isto é, parou de celebrar
Missa, pronto, prevaleceu ali a heresia protestante, a revolução venceu,
cessou o santo sacrifício. (Curso do Pe. Paulo Ricardo: Lutero
e o Mundo Moderno, aula “Lutero Universitário”.)
- Antigamente, os luteranos usavam a palavra Missa,
como no novo ritual criado por Lutero, a Deutsche Messe, a
chamada missa alemã, que era um culto protestante. Mas, aos poucos, eles
deixaram de lado essa linguagem e hoje em dia o que eles dizem é Gottesdienstes,
o culto a Deus. É um culto, como a gente usa na língua portuguesa.
- A Oração Eucarística I, conhecida como Cânon
Romano, foi a única a ser rezada por séculos. Toda ela está baseada na
convicção de que a Missa é um sacrifício. Em seu núcleo fundamental, ela é
de época apostólica, sendo citada em seu núcleo já por Santo Ambrósio.
Depois, houve o seu desenvolvimento com os Santos Padres (São Gregório
Magno e outros), que foram acrescentando mais coisas.
- Vamos recordar brevemente o que é sacrifício em
sentido estrito. Primeiro, deve haver um sacerdote no sentido
verdadeiro e próprio, ou seja, um homem que recebeu uma delegação, uma
deputação para oferecer um sacrifício em nome do povo, um sacrifício
público. Os protestantes não aceitam isso, não aceitam o sacerdócio
católico, o ministro. Eles só aceitam o sacerdócio batismal, o sacerdócio
no sentido amplo da palavra. Cada um é seu sacerdote, mas não é sacerdote
no sentido estrito da palavra porque não recebeu a delegação de oferecer o
sacrifício em nome de todos. Você oferece o seu sacrifício, o outro
oferece outro sacrifício; então não se trata sacrifício no sentido estrito
da palavra. Segundo, para que haja sacrifício no sentido
estrito da palavra deve haver uma coisa sensível, um objeto sensível, seja
um cordeiro, um boi, um touro, pão e vinho, enfim, uma coisa externa que
seja oferecida. Ou o Cristo que oferece o seu corpo para ser sacrificado
na Cruz. Deve haver algo sensível que está sendo oferecido, sinal externo
de um sacrifício interior da vontade, da alma. Se não houver esse sinal
externo, não há sacrifício no sentido estrito da palavra. E deve haver a
modificação dessa coisa ou pela morte do animal ou pelo derramamento do
líquido ou, no caso do pão e do vinho consagrados na Missa, pela
transformação, pela transubstanciação e, digamos assim, a separação
sacramental do Corpo e Sangue de Cristo pelas duas consagrações
diferentes. Jesus não morre outra vez, nada disso, mas, simbolicamente (em
razão das consagrações separadas do Corpo e do Sangue), é a morte de
Cristo que acontece na Missa.
- João Calvino, Institutio religionis christianæ, v. 2.
Brunsvique: Schwetschke, 1869, p. 1051.
- Curso do Pe. Paulo Ricardo: Lutero e o Mundo Moderno um estudo profundo de Paul Hacker — que, inclusive, tem o prefácio de ninguém menos que Joseph Ratzinger. O livro chama-se, na tradução inglesa, Faith in Luther (“A fé em Lutero”).