O Gesto que Fala: A Teologia das Casulas Dobras nos Tempos Penitenciais
Por que retornar ao uso das casulas dobradas (planetis plicatis) em tempos penitenciais? O que esse costume aparentemente “arcaico” tem a dizer à Igreja de hoje?
Em meio à crescente redescoberta da riqueza litúrgica
tradicional, ressurge — com discrição, mas com firmeza — o uso das casulas
dobradas durante o Advento, Quaresma e outros momentos de penitência no
ciclo litúrgico. Para alguns, isso pode parecer um detalhe estético ou um
capricho de antiquário. Mas na verdade, estamos diante de uma expressão
profunda da espiritualidade litúrgica romana, carregada de simbolismo,
história e teologia.
Origem e sentido
Nos primeiros séculos do Cristianismo, o clero não usava
trajes distintos dos leigos. A chamada paenula — antecessora da casula —
era uma espécie de capa ampla usada por todos. Mas quando essa veste foi
assumida como paramento litúrgico, passou a simbolizar a caridade que tudo
cobre, o manto da graça que envolve o ministro de Deus.
Contudo, a casula, por sua amplitude, limitava severamente
os movimentos dos braços — especialmente para diáconos e subdiáconos
encarregados de proclamar as leituras ou assistir ao altar. A solução prática
foi dobrar as extremidades da casula para facilitar os gestos
litúrgicos, sem dispensar a dignidade do paramento. Assim nasceu a prática das casulas
dobradas.
Mas o que começou por necessidade funcional, logo se
carregou de um significado mais alto: em tempos penitenciais, o ministro
dobra sua veste como quem dobra seu coração. É o sinal visível de um
recolhimento interior. Uma renúncia simbólica ao esplendor — sem jamais perder
a dignidade. É o gesto humilde de quem serve em tempos de jejum e vigília.
Uma teologia visível
A casula tradicional simboliza o “jugo suave” de Cristo (cf.
Mt 11,30), mas também o peso da caridade pastoral. Quando dobrada, ela aponta
para a abnegação daquele que, mesmo revestido da dignidade sacerdotal,
se faz pequeno para servir melhor.
Esse gesto litúrgico — dobrar a casula, ou substituí-la por
uma estola larga nos ritos mais recentes — torna-se uma catequese
silenciosa. Ele educa o corpo e a alma, recorda ao povo e ao clero que
certos tempos pedem contenção, sobriedade, penitência. Em tempos de ruído, esse
silêncio visual é uma verdadeira pregação.
Casulas dobradas (planetis plicatis)
Enquanto estamos na atual Oitava, durante a qual, é claro,
usam-se paramentos brancos (e, em alguns lugares mais ousados, até azuis — mas
isso fica para outro artigo), parece oportuno dedicar uma reflexão não à liturgia
do dia, mas ao uso interessante e antigo das casulas dobradas.
O uso das casulas dobradas — planetis plicatis
nos livros litúrgicos — é uma característica antiquíssima da liturgia romana,
mesmo que o estilo “moderno” de paramento tenha evoluído um tanto desde sua
forma original. Tudo indica que, nos primórdios da Igreja, o clero usava trajes
seculares, ou algo bem próximo disso; a ideia de uma roupa clerical distinta só
surgiu mais tarde. Uma imagem famosa de São Gregório com seus pais, Gordiano e
Sílvia, foi reproduzida no livro Liturgical Vesture de Cyril Pocknee
(Mowbrays, 1960), retirada da obra de Rocca, S. Gregorii, ejusdem parentum
imagines, Roma, 1597. Essa imagem — reproduzida abaixo na postagem original
— mostra os três usando a pænula (ou casula) por cima de uma dalmática,
que por sua vez cobre uma alva. A única diferença: São Gregório traz um pálium
sobre sua pænula, e a alva da mãe tem uma decoração na barra.
Os historiadores da liturgia acreditam que essas casulas amplas eram usadas por todo o clero (e também pelos leigos) nos primeiros séculos. Com o tempo, à medida que surgiram vestes litúrgicas mais específicas para o clero, e com a introdução posterior da dalmática (símbolo de alegria), manteve-se a prática antiga de todos os clérigos usarem a casula, mesmo em tempos penitenciais como o Advento.
Como dá para ver na imagem, os movimentos dos braços de São
Gregório e seus pais ficam bem limitados por essas dobras largas e soltas das
casulas. A teoria geralmente aceita é que o subdiácono e, especialmente, o
diácono, achavam essas casulas tão restritivas para segurar livros, cantar as
perícopes e fazer outras funções, que começaram a dobrá-las nas laterais ou até
tirá-las. Depois, por praticidade, o diácono passou a dobrar a casula no
comprimento e jogá-la sobre o ombro.
Com o tempo — especialmente desde o século XVII — a casula
foi perdendo pano e se tornando um paramento bem mais reduzido. Como essa
versão “moderna” não limita em nada os braços, passou-se a fazer uma dobra simbólica
na frente — planetis plicatus ante pectus, como dizem os livros
litúrgicos. Provavelmente, nas casulas antigas, a dobra era lateral, mas na
casula romana ela se tornou simbólica na frente — muitas vezes nem sendo
realmente dobrada, apenas feita com a parte frontal mais curta. (Aliás, uma
correção foi feita na postagem original: o conjunto de São Magnus foi de fato
dobrado e costurado.)
As regras de uso são as seguintes: Nos dias de semana
e domingos do Advento e da Quaresma (exceto os domingos Gaudete e Lætare),
nas Têmporas (exceto as de Pentecostes), nas Vigílias da Páscoa e de
Pentecostes, e na Festa da Apresentação do Senhor (Candelária), o diácono e o
subdiácono usam casulas dobradas roxas. Na Sexta-feira Santa, de forma
única, usam-se casulas dobradas pretas para a Missa dos
Pré-Santificados. (Em funções pontificais nesses mesmos dias, os diáconos
assistentes e cônegos também as usam.)
Durante a última coleta, o subdiácono vai ao banco e tira
sua casula dobrada. Canta a Epístola e, após receber a bênção do
celebrante, veste novamente a casula e move o missal, como de costume.
Quando o celebrante começa a ler o Evangelho, o diácono vai à credência e tira
sua casula dobrada. Dependendo do estilo do paramento, ele pode dobrá-la no
comprimento e jogá-la sobre o ombro ou, mais comum com os paramentos no estilo
romano, ele veste uma faixa larga de seda sobre a estola — chamada estola
larga — que representa simbolicamente a casula dobrada. Depois disso, ele
pega o Evangeliário e serve o resto da Missa apenas com a estola larga. Após a
comunhão, ao retornar o missal para o lado da Epístola, ele remove a estola
larga (ou “desprende” a casula dobrada) e volta a vestir a casula dobrada.
Recentemente, Shawn Tribe, do site The New Liturgical
Movement, descobriu algumas fotos mostrando casulas dobradas bem diferentes
— e talvez mais próximas da aparência que tinham antes dos paramentos
litúrgicos terem sido radicalmente simplificados. As fotos foram tiradas na
Abadia belga de Santo André (de onde saiu aquele famoso e excelente Missal
Diário). Vale muito a leitura do artigo.
As casulas dobradas se tornaram uma das “vítimas” da nova
ordem da Semana Santa de 1955 (embora ainda tenham sido usadas nas versões
experimentais da Vigília Pascal de 1951 e 1952), e depois foram abolidas do
resto do ano litúrgico em 1961.
Resta apenas esperar que as casulas dobradas voltem a ser
vistas em muito mais lugares no futuro. Porque, convenhamos… tradição tem
estilo.
O golpe de 1955 — e a esperança do retorno
Com as reformas da Semana Santa promulgadas em 1955, a
casula dobrada foi suprimida desse período central do Ano Litúrgico. Em 1961,
foi totalmente abolida. O motivo? Provavelmente o desejo de simplificação e
homogeneização — um espírito prático, mas empobrecido. Perdeu-se, assim, uma
linguagem rica que não precisava de palavras para transmitir profundidade
teológica.
Felizmente, movimentos ligados à renovação da tradição
litúrgica vêm recuperando esse tesouro. Em missas celebradas na forma
extraordinária ou nas comunidades que seguem os usos antigos, as casulas
dobradas voltam a aparecer. Em algumas celebrações pontificais, vê-se o
renascimento desse uso com reverência e discreta alegria — porque não se trata
de nostalgia, mas de memória viva.
Por que usá-las hoje?
- Porque expressam com gestos o que a liturgia quer dizer com palavras: penitência, recolhimento, sobriedade.
- Porque ensinam, sem falar, que nem todo tempo é tempo de brilho.
- Porque nos reconectam com a sabedoria da Igreja antiga — aquela que sabia formar corações pela repetição de gestos santos.
- Porque, num mundo acelerado e descartável, nos lembram que o passado não é peso: é raiz.
Recuperar o uso das casulas dobradas é recuperar um elo
perdido com a alma da liturgia romana: seu realismo, sua humildade, sua
linguagem simbólica. É dobrar o tecido... e erguer o coração.
📚 Referências
Bibliográficas
- Pocknee, Cyril. Liturgical Vesture: Its
Origin and Development. Mowbrays, London, 1960.
Fonte direta da imagem de São Gregório com seus pais e
discussão sobre a evolução da casula.
- Rocca,
Giovanni Battista. S. Gregorii, ejusdem parentum imagines.
Roma, 1597.
Obra citada como origem da ilustração litúrgica histórica.
- Fortescue, Adrian. The Ceremonies of the Roman
Rite Described. Burns & Oates, várias edições (primeira em
1917).
Referência clássica para rubricas, usos e desenvolvimento
litúrgico romano, inclusive sobre vestes.
- Jungmann, Josef A. Missarum Sollemnia: The
Mass of the Roman Rite — Its Origins and Development. Benziger
Brothers, 1951.
Obra monumental sobre a história da Missa, com discussões
sobre vestes e simbologia.
- The New Liturgical Movement
(Shawn Tribe et al.).Artigos diversos. Disponível em: https://www.newliturgicalmovement.org
Fonte de imagens recentes, observações e redescobertas
modernas das casulas dobradas.
- Catholic Encyclopedia (1913
edition).
Artigos: Chasuble, Liturgical Vestments, Lent, etc.Disponível em: www.newadvent.org - Sagrada
Congregação dos Ritos. Rubricae Generales Missalis Romani, ed.
1962.
Fonte normativa para os usos ainda prescritos das casulas
dobradas, especialmente em tempos penitenciais.
- Sacrosanctum
Concilium — Constituição sobre a Sagrada Liturgia. Concílio Vaticano
II, 1963.
Principal documento conciliar sobre liturgia, relevante ao tratar do valor da tradição e dos sinais visíveis.
Por um Carmelita Secular da Antiga Observância