Extra omnes! — O Grito que Fecha o Mundo e Abre o Céu
“Extra omnes!” É um comando. Um grito solene. Uma
exclusão necessária. Mas mais do que isso: é um rito. Quando ecoa nas
paredes da Capela Sistina, não é apenas uma ordem logística; é um ato
litúrgico carregado de sentido teológico, eclesiológico e espiritual.
I. A Origem da Fórmula
A expressão latina “Extra omnes!” significa
literalmente “Todos para fora!”. Ela marca o início do Conclave, o
processo de eleição do Sumo Pontífice, sucessor de São Pedro. Esta fórmula não
é fruto de modernidade alguma: sua origem remonta aos antigos procedimentos
eclesiásticos que exigiam o isolamento total dos cardeais eleitores para
que pudessem discernir livremente a vontade de Deus, sem interferência do mundo
exterior.
II. O Simbolismo do Isolamento
A exclusão ritual dos não-eleitores não é uma mera precaução
organizacional. É símbolo. E símbolos, como ensina Romano Guardini, “falam mais
fundo que as palavras e mais alto que os raciocínios”.
Ao se gritar “Extra omnes!”, o Mestre das Celebrações
Litúrgicas Pontifícias está dizendo: o mundo deve calar, pois a Igreja vai
escutar Deus. O som ecoa, as portas se fecham, e então… o Espírito Santo
entra.
Este isolamento dos cardeais pode ser comparado ao retiro de
Jesus no deserto: quarenta dias de silêncio para escutar o Pai. O
Conclave é um deserto eucarístico, onde os cardeais jejuam do mundo para
saciarem-se da Vontade divina.
III. Liturgia e Eleição
A eleição do Papa não é apenas um evento jurídico — é, acima
de tudo, um ato litúrgico, no qual a Igreja celebra a sua própria
obediência ao Espírito Santo. A liturgia da eleição é entrelaçada de orações,
invocações ao Espírito Santo e rituais que não são decorativos, mas invocações
reais de graça.
O “Extra omnes” é o corte: ele separa o profano do sagrado,
o externo do interno, o mundo da Igreja em discernimento. É uma forma de kenosis
eclesial: a Igreja se esvazia de todos os olhares, vozes e interesses
humanos, para deixar espaço apenas à ação divina.
IV. Teologia da Porta Fechada
A porta fechada da Capela Sistina não é uma metáfora: é
teologia pura.
Na Bíblia, a porta tem um papel teológico constante: Noé
fechou a arca, os anjos fecharam Sodoma, Jesus manda fechar a porta do quarto
ao rezar (Mt 6,6), e no Apocalipse a porta do céu se abre apenas para quem tem
a chave. A eleição papal segue essa mesma mística: fecha-se a porta do
mundo, para que se abra a do céu.
Não é coincidência que a Capela Sistina, esse templo do
Juízo Final de Michelangelo, seja o palco. Cada cardeal reza sob a imagem do
Cristo que julga vivos e mortos — lembrando-os de que ali não estão decidindo
por conveniência política, mas sob o olhar eterno do Salvador.
V. E o Mundo Espera…
Do lado de fora, o mundo espera em suspense. A chaminé se
torna altar. O povo de Deus, mesmo sem acesso, participa — com o coração em
oração. A liturgia é eclesial, não clerical. O “Extra omnes” exclui
fisicamente, mas inclui espiritualmente toda a Igreja em súplica.
No fundo, “Extra omnes” também nos questiona: quanto do
mundo precisa sair da nossa alma para que Deus possa entrar? O grito que
fecha a Capela Sistina precisa ecoar em cada consciência cristã: silêncio, Deus
quer falar.
VI. O “Extra omnes” como Momento Apofático
A teologia mística cristã — especialmente a tradição
apofática — ensina que há momentos em que Deus só se deixa encontrar no
silêncio e na ausência das imagens. O “Extra omnes” é esse momento.
Quando o grito ecoa, o visível se recolhe, o ruído se apaga, as luzes do mundo se apagam para que brilhe aquela “luz inacessível” da qual fala São Paulo (1Tm 6,16). Nesse sentido, o conclave é uma espécie de “nuvem do não-saber” (The Cloud of Unknowing), uma entrada no mistério que só pode ser vivida na clausura sagrada. O “Extra omnes” é, pois, um chamado ao mistério — um eco do Sinai onde só Moisés pode subir.
VII. O Conclave como Liturgia Monástica
Há uma espiritualidade monástica e penitencial por
trás do conclave. Os cardeais se recolhem como monges no mosteiro: deixam o
mundo, entregam o celular, esquecem as manchetes. A Igreja suspende o tempo
profano e entra num tempo kairológico, tempo de Deus.
A eleição, nesse sentido, é comparável ao ofício monástico: há canto do Veni Creator Spiritus, há jejum, há recolhimento. E há combate espiritual — porque não se trata apenas de escolher um homem, mas de discernir a Vontade divina sobre a Igreja.
VIII. Uma Sacra Dramatúrgia
Do ponto de vista teológico-litúrgico, o conclave pode ser
visto como uma dramatização sacramental do Cenáculo. Jesus, antes de
escolher seus apóstolos, passou a noite em oração (Lc 6,12). Aqui, os
sucessores dos apóstolos se reúnem sob as imagens do Juízo Final para eleger
aquele que será, em sentido profundo, o “servo dos servos de Deus”.
A Capela Sistina torna-se então um templo escatológico. As figuras de Michelangelo não estão ali por acaso: são a moldura visual do drama espiritual que acontece dentro. Cada pincelada aponta para o eterno, e cada gesto dentro da capela é, por isso, carregado de peso espiritual.
IX. Uma Pedagogia do Silêncio
Em um mundo de excesso de informação, o “Extra omnes” nos
ensina que há decisões que exigem silêncio, exclusão e recolhimento. A
pedagogia divina é, muitas vezes, contraintuitiva: em vez de “mais dados”, o
que precisamos é de mais oração, mais esvaziamento interior.
Por isso, o “Extra omnes” é também uma catequese para nós, cristãos do século XXI: se queremos ouvir a Deus, precisamos fechar a porta da Capela Sistina interior que carregamos dentro de nós — nossos ruídos, nossas ansiedades, nossos julgamentos. E então, ali, no silêncio fecundo, o Espírito falará.
X. Conclusão — Quando o Céu Fecha a Porta
A força do rito não está apenas no que ele exclui, mas no
que ele invoca. É uma operação espiritual que só pode ser entendida com
olhos de fé. Naquele momento, a Igreja entra em oração profunda, em jejum
político, em estado de espera pascal.
E no fundo, é a imagem da nossa vida cristã: precisamos
muitas vezes gritar “Extra omnes!” dentro de nós — expulsar o supérfluo, fechar
portas, silenciar, para que o Espírito Santo nos encontre e nos conduza. A
porta que se fecha na Capela Sistina é também uma imagem da alma que se tranca
para tudo, menos para Deus.
Por um Carmelita Secular da Antiga Observância
Referências Bibliográficas
- GUARDINI, Romano. O Espírito da Liturgia. São Paulo: Ed. Loyola, 2004.
- RATZINGER, Joseph (Bento XVI). Introdução ao Espírito da Liturgia. São Paulo: Ed. Loyola, 2001.
- VATICANO. Universi Dominici Gregis. Constituição Apostólica sobre a Vacância da Sé Apostólica e a Eleição do Romano Pontífice, 1996.
- MICHELANGELO, Buonarroti. Juízo Final. Capela Sistina, Vaticano.
- WILSON, Peter H. The Holy Roman Empire: A Thousand Years of Europe's History. Penguin Books, 2016.
- CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Edição Típica Vaticana, 1997.
- SÃO BENTO DE NÚRSIA. Regra de São Bento. Traduções diversas.
- SARAH, Robert. O Poder do Silêncio: Contra a Ditadura do Ruído. São Paulo: Molokai, 2017.
- BALTHASAR, Hans Urs von. Glória: Uma Estética Teológica. Traduções diversas.
- Pseudo-Dionísio Areopagita. Teologia Mística. Trad. portuguesa: Paulus (ou edições afins).
- Autor anônimo. The Cloud of Unknowing. Traduções modernas disponíveis em português e inglês.
- SAGRADAS ESCRITURAS: 1Tm 6,16; Mt 6,6 – Bíblia Sagrada.
- MISSAL ROMANO E LITURGIA DAS HORAS. Edições Típicas.
- Artigos diversos em revistas especializadas como Communio, Nova et Vetera, Sacra Liturgia.