Duas partes imutáveis da Missa


No edifício da liturgia católica há uma estrutura divino-apostólica, que a Igreja não tem o poder de modificar. Trata-se da divisão da Missa em duas partes: a “dos catecúmenos” e a “dos fiéis”; ou, como se convencionou chamar mais recentemente, a liturgia da palavra e a liturgia eucarística.

Como vimos no artigo passado, vamos estudar o desenvolvimento orgânico da liturgia católica. Ou seja, veremos como a semente, plantada por Cristo, regada e cultivada pelos Apóstolos, foi se desenvolvendo lentamente ao longo dos séculos e se manteve a mesma até as vésperas do Concílio Vaticano II — após o qual, embora a substância daquela semente se preservasse, é possível notar alguns aspectos de ruptura.

A estrutura da Missa traçada no Novo Testamento

Devemos então partir do Novo Testamento, pois ali já conseguimos notar uma estrutura divino-apostólica da Missa, estrutura que, dada a sua origem, não pode ser alterada.

Há algo, portanto, que está na estrutura fundamental da liturgia e que a Igreja não pode modificar, pois é herança do tempo dos Apóstolos. Essa estrutura é a divisão da Missa em duas partes: a Missa dos catecúmenos e a Missa dos fiéis; ou, como se convencionou chamar mais recentemente: a liturgia da palavra e a liturgia eucarística.

A prova de que essa é a estrutura fundamental da Missa, recebida diretamente dos Apóstolos, está no fato de que podemos observá-las em todos os ritos da cristandade — com exceção, claro, dos cultos protestantes. Se olharmos os ritos ocidentais, o romano, o ambrosiano, o moçárabe, e outros antigos já abolidos, notaremos que todos seguem essa mesma estrutura. Também os ritos orientais — os que se desenvolveram na Síria, como o rito bizantino; os ligados à Igreja de Alexandria, como o rito copta; os indianos, como o malabar e o malancar —, todos seguem essa mesma estrutura básica e fundamental: liturgia da palavra e liturgia eucarística, a primeira de caráter mais missionário, aberta ao público geral; a segunda mais interna, pois de valor propriamente sacramental — pois é quando se dá a renovação do sacrifício de Cristo.

Mas não é só essa perseverança no tempo e no espaço o que comprova a origem apostólica da liturgia. Há também documentos antigos que atestam essa realidade, como, por exemplo, a famosa Apologia de São Justino, escrita no século II d.C., na chamada idade sub-apostólica [1], e que leremos adiante.
Digo que essa estrutura é a mesma desde o início, mas é preciso entender de antemão que ela recebeu contribuições e foi sendo moldada pelos próprios Apóstolos.

São Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios, nos dá, como vimos no artigo passado, o relato mais antigo da Eucaristia, e ele nos mostra que naquelas primeiras comunidades cristãs não havia total clareza acerca da liturgia. E digo que não havia clareza, pois, nesta carta, escrita por volta de 54 d.C., apenas vinte anos após a Ascensão de Nosso Senhor, São Paulo critica aquele ambiente de celebração eucarística dos banquetes fraternos, os chamados ágapes, em que cada um levava a sua refeição e, idealmente, a repartia com os demais. O Apóstolo já dizia claramente que aquela estrutura não funcionava [2]. As pessoas iam para se fartar. Uns levavam muito e se refestelavam; outros não levavam nada; no fim, não havia fraternidade nenhuma.

O fato é que, desde o tempo dos Apóstolos, os cristãos se reuniam para fazer a “partilha do pão”, com a consciência de estarem realizando aquilo que Cristo havia ordenado na Última Ceia: “Fazei isto em memória de mim”, fazei isto para a minha anamnese, diz São Paulo.

Essa palavra, anamnésis, em grego, significa tirar do esquecimento. Mnesis é memória; amnesis é esquecimento. A negação da negação, anamnesis, é justamente tirar do esquecimento, recordar. Ora, esse termo grego — que no latim se dirá commemoratio — tem um sentido muito profundo na teologia judaica.

Eles chamam recordação de zikaron. Para os judeus, recordar os fatos do passado é o mesmo que realizá-los de novo, no presente, de forma mística. E isso que os judeus já faziam no Antigo Testamento, se torna, no Novo, com a instituição da Eucaristia, uma realidade por assim dizer concreta, palpável. Quando fazemos a commemoratio, a anamnésis da Paixão de Cristo, não realizamos apenas uma rememoração, mas uma representação, num sentido específico do termo: tornamos, mais uma vez, aquele fato, o acontecimento salvífico, como uma realidade presente. 

Palavra e sacrifício no Velho Testamento

São Paulo fala disso com muita clareza, de modo que, podemos concluir, essa parte sacrifical da Missa já estava consolidada desde o princípio [3]. Já a primeira parte, a da palavra, deriva daquilo que os judeus faziam nas sinagogas. Pelo relato de São Paulo, temos que os primeiros cristãos inclusive iam às sinagogas [4].

Ratzinger, aliás, no seu Espírito da Liturgia, destaca o fato de que o culto das sinagogas estava ele mesmo voltado para o sacrifício realizado no Templo de Jerusalém.

Nos tempos de Jesus, vale explicar, existiam duas formas de se prestar culto a Deus: o sacrifício do Templo, e o culto sinagogal, de leitura e estudo das Sagradas Escrituras, culto que se praticava em Jerusalém e em outras cidades.

Quer dizer, dentro do próprio movimento judaico existe essa duplicidade litúrgica. Havia, inclusive, o grupo dos fariseus, mais ligados às sinagogas e à interpretação da Lei, e o do saduceus, mais ligados ao culto do Templo, o que criava entre eles uma certa tensão — embora não uma separação, pois, assim como nós cristãos realizamos a Missa voltados para o Oriente, o Sol nascente, versus Deum, os judeus construíam suas sinagogas voltadas para o Templo e o sacrifício de bodes e carneiros que ali era realizado, criando uma sintonia entre eles.

Com a morte de Jesus, no entanto, rasga-se o véu do Templo e o sacrifício ali praticado se torna obsoleto. Temos a partir de então o cálice da nova e eterna aliança, o Novo Testamento, dado por Cristo de forma sacramental na Última Ceia, e vivido desde o início pelos Apóstolos. Dali para diante, não eram mais necessários os bodes e carneiros, como a Carta aos Hebreus deixa claro. Esta cartadiga-se, é toda uma homilia cujo fim é demonstrar que tínhamos em Cristo um novo sacerdote que oferece a Deus o sacrifício perfeito, do qual falamos longamente no primeiro módulo.

Fato é que, se o culto da sinagoga era voltado para o sacrifício do Templo, a leitura das Sagradas Escrituras, na Missa, deve estar voltada para o sacrifício eucarístico.

Tanto é assim que nós podemos afirmar que a Bíblia nasceu na Missa. Claro, já existia o Antigo Testamento, mas foram os bispos que passaram a criar listas, cânones de livros que, inspirados por Deus, poderiam ser lidos durante a Missa. Assim surgiu o compilado de 27 livros que formam o Novo Testamento. 

A Primeira Apologia de Justino

Essa é uma visão geral de como a liturgia, desde suas bases judaicas, foi se desenvolvendo até o tempo apostólico.

Agora vamos ler a primeira das Apologias de Justino, o Mártir. Escrito por volta do ano de 155, esse livro de defesa da fé foi dirigido ao Imperador Antonino Pio. Nele Justino faz dois relatos da liturgia: primeiro de uma Missa com batismo; o segundo de uma Missa comum, que se celebrava num domingo qualquer. Note que esses relatos datam do chamado tempo sub-apostólico. A essa época, São João, por exemplo, já havia morrido, mas ainda era absolutamente possível encontrar-se com alguém que o tivesse conhecido pessoalmente.

No primeiro relato, ele explica que para participar da Eucaristia é preciso ser batizado e viver conforme Cristo ensinou. É importante enfatizar esse ponto pois há muitos iluminados modernos para quem a Missa dos primeiros dias era “inclusiva”, “livre dos preconceitos medievais”, “livre do moralismo que diz só poder comungar aqueles que estejam em estado de graça”; para eles, todos, sem distinção, podiam participar da partilha do Pão.

Veja que não há preconceito ou moralismo medievais coisa nenhuma. Trata-se de uma realidade apostólica, confirmada por um apologista da época sub-apostólica. São Paulo, vale lembrar, disse na Primeira a Coríntios que quem come e bebe do Corpo e do Sangue do Senhor sem estar preparado come e bebe da própria condenação. E Justino como que repete isso ao imperador, mostrando que ele próprio, Antonino, em sendo pagão, não poderia participar daquilo que ele, Justino, estava descrevendo.

Diz ele: “Esse alimento se chama entre nós Eucaristia”. Veja que estamos no ano 155 e o termo técnico já é Eucaristia. Não quer dizer pura e simplesmente “ação de graças”. E continua: “Eucaristia, da qual ninguém pode participar a não ser que creia serem verdadeiros os nossos ensinamentos, tenha se lavado no banho que traz a remissão dos pecados e viva conforme o que Cristo nos ensinou”. Quer dizer: é preciso ter fé, estar em estado de graça e realmente viver uma vida cristã. Segue:

Foi isso que os Apóstolos nas memórias por eles escritas, que se chamam Evangelhos, nos transmitiram que assim foi mandado a eles, quando Jesus, tomando o pão e dando graças, disse: “Fazei isto em memória de mim, este é o meu corpo”. E igualmente, tomando o cálice e dando graças, disse: “Este é o meu sangue”, e só participou isso a eles [5].

Esse é o primeiro relato, tirado de um ambiente de batismo. No Catecismo, número 1345, temos o segundo relato [6]. Vejam como está claramente ali a estrutura divino-apostólica da Missa que orienta todos os ritos tradicionais. Justino diz assim:

No dia do Sol [7] como é chamado, reúnem-se [8] num mesmo lugar os habitantes, quer das cidades, quer dos campos. Lê-se, na medida que o tempo permite, ora os comentários dos Apóstolos, ora os escritos dos Profetas.

É como Justino explica as leituras do Antigo e do Novo Testamentos. Continua: “Depois, quando o leitor terminou, o que preside toma a palavra para exortar à imitação de tão sublimes ensinamentos”.

Trata-se claramente da homilia, o que completa a primeira parte da Missa: a liturgia da palavra, ou, Missa dos catecúmenos.

Antes de prosseguirmos, vale adiantar que nessa época de Justino não havia ainda a disciplina do arcano, que será estabelecida no século seguinte. Esta regra mandava que toda a parte da liturgia eucarística ficasse protegida sob segredo. Ou seja, ninguém podia contar o que se passava nesse momento da Santa Missa, e isso no sentido de preservar a Eucaristia daqueles que, sem compreendê-la, a estavam deturpando. Nos tempos de Justino ainda não havia essa disciplina, e a prova é que ele está explicando a Missa, ponto a ponto, a um pagão.

Voltando à estrutura da liturgia. Primeiro, então, Deus fala conosco através das Escrituras, e mesmo quem está em pecado pode ouvir a sua Palavra. Agora vejamos a segunda parte, da qual só os batizados que estivessem em estado de graça podiam participar. Diz Justino:

A seguir, pomo-nos todos de pé e elevamos nossas preces por nós mesmos [...] e por todos os outros, onde quer que estejam, a fim de sermos de fato justos por nossa vida e por nossas ações, e fiéis aos mandamentos, para assim obtermos a salvação eterna [9].

Quando as orações terminaram, saudamo-nos uns aos outros com um ósculo.

É o “ósculo santo”, que agora demos de chamar “abraço da paz”. Naquele tempo, só os fiéis podiam participar desse momento, como sinal mais íntimo de comunhão. Os catecúmenos, então, já não estavam presentes. 

Continua: “Em seguida, leva-se àquele que preside aos irmãos pão e um cálice de água e de vinho misturados”. Temos aí o Ofertório, a preparação das ofertas. Depois: “Ele os toma e faz subir louvor e glória ao Pai do universo, no nome do Filho e do Espírito Santo e rende graças longamente… pelo fato de termos sido julgados dignos destes dons”. Pelo relato anterior, da Missa de batismo, podemos distinguir nessa segunda parte da liturgia a estrutura que conhecemos como o Prefácio, a Consagração e as orações de intercessão feitas pelo sacerdote. Continua o relato: “Terminadas as orações de ações de graças, todo o povo presente prorrompe numa aclamação dizendo: Amém”. Mais tarde, Tertuliano, numa bela figura de linguagem, embora exagerada, dirá que, em Roma, esse amém soava como um trovão.

Por fim: “Depois de o presidente ter feito a ação de graças e o povo ter respondido, os que entre nós se chamam diáconos distribuem a todos os que estão presentes pão, vinho e água ‘eucaristizados’, e levam (também) aos ausentes”. 

O relato se destina a um pagão e, portanto, não tem aqui longas justificativas teológicas. Trata-se de uma linguagem mais simples e acessível. No entanto, vê-se com toda a clareza a estrutura fundamental da divina e santa Eucaristia, estrutura, como vimos, de origem apostólica, algo que, portanto, não está em nossas mãos modificar.

Não é impressionante o que acabamos de ler? A Missa está completamente preservada, em sua estrutura fundamental, há dois mil anos, no mundo inteiro, na cristandade inteira — exceto pelos revolucionários protestantes, que resolveram jogar tudo no lixo.

Nota

  1. Quando já estavam mortos os Apóstolos, mas vivas as pessoas que os conheceram.
  2. Essa estrutura de ceia, portanto, não funcionava em termos litúrgicos. Tanto é que a Ceia do Senhor, deipnon em grego, é abandonada pela Igreja e só volta à voga pelos revolucionários protestantes no século XVI. Desde a idade sub-apostólica, vemos bem estabelecido o termo Eucaristia para se referir à Missa.
  3. No primeiro módulo, quando expúnhamos a nossa lex credendi, demonstramos longamente essa afirmação.
  4. Aliás, lendo os Atos, vemos que o Apóstolo enxergava isso como um método missionário: a primeira coisa que fazia quando chegava a uma cidade era perguntar pela sinagoga e, chegando lá, pregava o Evangelho. É evidente que isso cria uma confusão e os cristãos começam a ser excomungados das sinagogas, o que faz essa parte da pregação se incorporar na liturgia cristã. Inclusive é interessante notar que quando São Paulo escrevia as suas cartas ele tinha a intenção de que elas fossem lidas em público, ele pede isso. São Pedro, por sua vez, se referia a essas epístolas como sendo Palavra de Deus ou instrumento para o seu conhecimento. São João, autor do Apocalipse, escreve saudando o leitor consciente de que ele leria aquele texto em público.
  5. São Justino Mártir, “Primeira Apologia”, 66. In: I e II Apologias: Diálogo com Trifão. São Paulo: Paulus, 1995, p. 52. Parte do trecho citado aqui pelo padre também se encontra no Catecismo da Igreja Católica, n. 1355.
  6. Cf. também São Justino Mártir, “Primeira Apologia”, 67. In: I e II Apologias: Diálogo com Trifão. São Paulo: Paulus, 1995, p. 53.
  7. Justino aí usa uma linguagem pagã. Dia do Sol, dies solis no latim, era como os pagãos se referiam ao domingo. Daí os derivados Sunday, no inglês, e Sonntag, no alemão. Domingo, ou dominicus, que vem de dominus, senhor, já é palavra cristã. Na linguagem cristã, o dia do Sol foi substituído pelo Dia do Senhor.
  8. É dessa ideia de reunião que deriva a palavra Igreja. Eklesia, do grego, quer dizer exatamente assembleia eucarística. Igreja, desse modo — em sentido metonímico, pois em sentido literal trata-se de todos os batizados —, é a comunidade que se reúne para comungar o Corpo de Cristo. Isso seria a Igreja, os membros do Corpo do Cristo. Interessante que a palavra Igreja, enquanto assembleia eucarística, ocorre já no início do Novo Testamento. Na Segunda Carta aos Coríntios, São Paulo saúda a igreja que está em Corinto e os santos da Acaia. Isso porque Corinto é uma cidade e Acaia toda uma região da Grécia. Portanto, ali, em toda a Acaia, não era possível constituir uma assembleia eucarística no sentido concreto da palavra. A eklesia estava, de fato, em Corinto.
  9. É por causa desse trecho que o rito de Paulo VI criou a chamada Oração Universal.