Infirmarii: Guardiões do Voto, Mensageiros do Espírito
Enquanto o mundo gira cada vez mais rápido ao som de
notificações e códigos digitais, há um lugar onde o tempo desacelera, quase
para. Um lugar onde cada gesto carrega séculos, e cada silêncio grita
eternidade. Esse lugar é a Capela Sistina durante o conclave. E nesse cenário
de afrescos escatológicos e vestes vermelhas, três homens caminham com passos
discretos, mas firmes. São os Infirmarii — cardeais eleitores
encarregados de levar o voto até os irmãos doentes.
Pode parecer detalhe. Mas não é. É teologia viva. É
tradição que se recusa a ceder ao pragmatismo do presente.
Quando a fragilidade entra no rito
Durante o conclave — assembleia sagrada que elege o sucessor
de Pedro — apenas os cardeais com menos de 80 anos têm direito a voto. Eles se
reúnem na Capela Sistina e, em silêncio, sob o olhar do Juízo Final pintado por
Michelangelo, votam. Um por um. Nenhum voto eletrônico. Nenhuma pressa.
Mas o que acontece quando um desses cardeais está doente,
fraco, incapaz de caminhar até a urna?
A resposta da Igreja é bela e contundente: ele ainda tem
voz. Ele ainda é parte do Corpo. Ele não será excluído.
E é aí que entram os Infirmarii.
Quem são os Infirmarii?
Três cardeais eleitores, escolhidos no início do conclave,
recebem a missão sagrada de visitar os cardeais enfermos. Levam com eles as
cédulas, um recipiente especial, orações, testemunhas e um profundo senso de
reverência.
Eles não são apenas carteiros de luxo do Vaticano. São liturgistas
do cuidado, ministros do respeito, defensores silenciosos da dignidade
humana.
Após o voto ser recolhido, os Infirmarii retornam à Capela
Sistina e colocam as cédulas na urna principal, junto com os demais votos. Tudo
com cerimônia. Tudo com gravidade. Porque ali, até um pedaço de papel carrega o
peso do Espírito Santo.
Não é logística. É teologia
Na lógica moderna, poderíamos imaginar soluções mais
“eficientes”: um link por e-mail, um tablet com biometria, um assistente
virtual. Mas no conclave, a forma importa tanto quanto o conteúdo.
Porque a Igreja não é uma empresa nem uma democracia — é um mistério encarnado.
O gesto de levar pessoalmente o voto ao doente é mais do que
protocolo. É a afirmação de que ninguém, ninguém, por mais frágil ou
cansado, é descartável. Cada voto é um sim ao Espírito Santo. Cada cardeal,
mesmo à beira da morte, é parte do discernimento da Igreja.
Um corpo que cuida de si mesmo
A Igreja se entende como o Corpo Místico de Cristo. Um corpo
com muitos membros, cada um com seu papel, cada um com seu valor. São Paulo já
ensinava isso aos coríntios: “Se um membro sofre, todos sofrem com ele”
(1Cor 12,26). Os Infirmarii são a concretização litúrgica dessa visão. São como
nervos que conectam o centro à periferia, o trono ao leito.
Eles são os que se recusam a abandonar os irmãos doentes.
Aqueles que, como o Bom Samaritano, interrompem sua caminhada para carregar o
outro nos ombros da tradição.
Contra a cultura do descarte
O Papa Francisco fala com frequência da cultura do
descarte. Um mundo que joga fora o velho, o doente, o improdutivo. O
conclave — esse ritual escondido por paredes milenares — responde com um grito
silencioso: não vamos deixar ninguém para trás.
Os Infirmarii nos lembram que tradição não é teimosia; é
memória com coração. Que cuidar do doente não é caridade; é justiça. Que o que
o mundo chama de ineficiência, a Igreja chama de fidelidade.
O doente também profetiza
Há algo escatológico nesse gesto. Algo profundamente
cristão. O voto do cardeal enfermo ecoa como uma última profecia. Como um
testamento. Como a bênção final de um patriarca que, antes de partir, ainda
quer contribuir com o futuro.
É como se a Igreja dissesse a ele, com voz terna: “Mesmo
à beira da eternidade, nós ainda escutamos tua voz.”
Lições para o mundo que nos olha
O que podemos aprender com isso? Que o doente tem lugar. Que
a tradição cuida. Que há beleza em respeitar os ritos. Que um sistema pode ser
antigo e, ainda assim, ser mais humano do que todos os apps do mundo.
Os Infirmarii não aparecem no Instagram do Vaticano. Não dão
entrevistas. Não causam manchetes. Mas eles representam o que a Igreja tem de
mais belo: a capacidade de carregar, com amor, os que não conseguem andar
sozinhos.
Eles são os que caminham devagar, mas fazem o Espírito
correr.
Por um Carmelita
Secular da Antiga Observância
Referências Bibliográficas
- João Paulo II. Universi Dominici Gregis. Constituição Apostólica sobre a Vacância da Sé Apostólica e a Eleição do Romano Pontífice, 1996.
- Catecismo da Igreja Católica, §§ 874–896 (sobre o ministério eclesiástico) e §§ 1930–1931 (sobre dignidade humana).
- São Paulo Apóstolo. Primeira Carta aos Coríntios, capítulo 12.
- Congar, Yves. A Igreja: De Santo Agostinho até os Tempos Modernos. Paulus, 2004.
- Ratzinger, Joseph (Bento XVI). Introdução ao Cristianismo. São Paulo: Loyola, 2005.
- Martini, Carlo Maria. O Espírito sopra onde quer. Paulinas, 1998.
- O’Malley, John W. Trent: What Happened at the Council. Harvard University Press, 2013.
- Allen Jr., John L. Conclave. Image Books, 2004.