O que é liturgia?


A história mostra que não existe um Missal propriamente “tridentino” ou “de Pio V”. O que o Concílio de Trento e São Pio V fizeram foi simplesmente acolher e promulgar, para toda a Igreja latina, um desenvolvimento orgânico da liturgia, que remonta aos próprios Apóstolos.

Conforme estamos vendo nos artigos do blogue, há de fato uma disputa, uma polêmica em torno do Missal antigo, dito de Pio V, e do Missal elaborado na reforma litúrgica durante o pontificado de Paulo VI.

No artigo passado, nós nos dedicamos a esclarecer, antes de mais nada, qual é o fundamento, qual é a lex credendi, a lei da fé, a baliza que deve orientar qualquer discussão em torno da liturgia católica. E, nesse esforço, nós apoiamos, não só, mas principalmente, no Concílio de Trento, pois nele há um dogma estabelecido sobre a matéria.

Feito isso, uma vez estabelecidas as bases, uma vez explicada qual é a nossa lex credendi, podemos, neste módulo, tratar da lex orandi. Vamos falar, em resumo, sobre como se deu o desenvolvimento da liturgia da Santa Missa, da Igreja primitiva até o Vaticano II, e, por essa razão, trataremos fundamentalmente do Missal antigo.

O objetivo é explicar as características desse Missal para além de um ponto de vista estático, que toma como único objeto de observação sua versão editada no ano de 1962. No fundo, vamos entender que não existe um Missal de Pio V, mas um Missal que foi se desenvolvendo orgânica e sistematicamente ao longo dos séculos, até ser substituído pela reforma de Paulo VI, que marcou (por que não dizer?) uma espécie de ruptura.

E não digo isso, que houve uma ruptura, porque eu seja um tradicionalista radical e fanático. Trata-se de uma realidade amplamente aceita. O próprio Joseph Ratzinger, no seu livro “O espírito da liturgia”, faz a seguinte constatação: 

A própria ideia de liturgia como realidade preestabelecida, portanto não disponível para intervenções arbitrárias, perdeu-se completamente na consciência comum do Ocidente [1].

Ora, no consilium para a implementação da reforma litúrgica, liderado na prática pelo Monsenhor Annibale Bugnini, criou-se uma tal liberdade para se fazer mudanças na liturgia que, de repente, as pessoas perderam a noção de que a liturgia é uma coisa que nós recebemos já pronta, uma realidade preestabelecida que não fica ao dispor do arbítrio humano. “A liturgia não é feita por um aparato burocrático” [2]ele acrescenta.

Em outro texto, comentando a obra Missarum Sollemnia, do famoso padre liturgista J. A. Jungmann, Ratzinger continua a reflexão:

Jungmann buscou sintetizar a concepção do Ocidente na expressão “liturgia desenvolvida no tempo” para remeter assim ao fato de que tal desenvolvimento continua ainda em um crescimento orgânico e não em um agir arbitrário [3].

Essa é a tese. Tese importante e fundamental. E é igualmente fundamental compreendê-la, pois muita gente lê o Jungmann com um certo espírito de ruptura. Argumentam que sua obra demonstra uma espécie de volatilidade, de maleabilidade na liturgia, e que, portanto, novas e novas mudanças poderiam ser sempre realizadas ao sabor da vontade humana. Mas não é essa a realidade.

Essa tese do desenvolvimento orgânico está num livro de Dom Alcuin Reid, prefaciado pelo próprio Joseph Ratzinger, intitulado The organic development of the liturgy. A ideia central vai no título: houve sempre mudanças na liturgia, mas mudanças como que naturais, como as de um organismo vivo, que nunca se transforma aos saltos. Ou, de outro modo: nunca houve na história da Igreja um Papa que permitisse reescrever todo o Missal, como aconteceu no consilium litúrgico do pontificado de Paulo VI.

E essa realidade, indicada pelo então Cardeal Ratzinger, suscita a seguinte reflexão: qual é o limite de poder de um Papa? Ora, o Concílio Vaticano I definiu, dogmaticamente, quais são os poderes do Papa. Agora, podemos fazer pelo menos uma reflexão teológica para entender quais são os limites desses poderes. É importante sabermos tanto o que pode um Papa fazer quanto o que ele não pode.

E para quem pense, escandalizado, que eu seja um maluco revolucionário, lembre-se que quem está dizendo isso não sou eu, mas o homem que mais tarde seria ele mesmo Papa. Dizia ele, no mesmo lugar:

A autoridade do Papa não é ilimitada. Ela está a serviço da Sagrada Tradição. Ainda menos se pode conciliar uma genérica liberdade de fazer, que se transforma em arbitrariedade, com a essência da fé e da liturgia. A grandeza da liturgia — devemos ainda repetir muitas vezes — se fundamenta propriamente na sua não arbitrariedade [4].

Palavras de Ratzinger. Não se trata de um livro escrito por algum radical tradicionalista obscuro, um sedevacantista ou coisa do gênero.

Para ilustrar melhor esse problema levantado pelo então cardeal — a falta de clareza, no Ocidente, quanto ao desenvolvimento orgânico da liturgia —, vou lhes contar uma anedota.

Tenho aqui dois missais, ambos “de Paulo VI”. Um, o mais velhinho, é uma edição original, que tenho como relíquia. Trata-se de um Missal de Paulo VI usado pelo próprio pontífice. Trago-o dos tempos em que trabalhei no Departamento de Celebrações Litúrgicas do Papa, em Roma, sob o comando de Dom Piero Marini, que era o cerimoniário papal.

O outro, mais robusto, é o mais recente.

Certa vez, estava no escritório de Dom Piero e ele recebeu o telefonema de um monsenhor responsável pela liturgia de certa Conferência Episcopal. Ele dizia:

— Viu que foi publicada essa nova edição do Missal? Não sei por que fizeram tão grande. Pensam que é o quê? Um super Missal?

E então, nessa mesma conversa, ele disse uma frase que a mim me soou chocante:

— Ora, se nós aqui, em Roma, podemos escrever um Missal, por que vocês aí também não podem? O que temos de especial?

Veja: apesar do pasmo que nos pode causar a ideia, se pararmos para refletir, veremos que o que ele disse é extremamente coerente. Não digo que seja certo ou errado. Apenas que é coerente. E veja que se trata de um admirador, de um defensor da obra de Bugnini.

Ora, se um grupo de teólogos em Roma pode reescrever o Missal, por que bispos de uma conferência mundo afora não podem fazer exatamente o mesmo? E, partindo desse princípio, por que a senhorinha da equipe de liturgia paroquial não pode reunir o seu grupo, seu próprio consilium, para discutir como será a Missa do domingo seguinte?

Trata-se, é claro, de uma mentalidade completamente diversa daquela vivida pela Igreja ao longo de quase dois mil anos, e é isso que gostaríamos de mostrar a vocês nessa etapa do artigo. Em duas palavras: queremos que vocês compreendam que a liturgia não é uma realidade estática, fotográfica. Ela é, sim, como querem alguns, dinâmica, passível de transformações. Mas — e aqui está o xis da questão — ela só mudou, ao longo dos séculos, em ritmo tectônico, de maneira orgânica, nunca de forma radical e revolucionária.

Precisamos pois, digo novamente, resgatar a ideia de que a liturgia é uma coisa que nós recebemos e transmitimos, ciclicamente, de geração a geração. Aliás, esses dois verbos, receber e transmitir, balizam desde o início a história da Igreja. O primeiro relato bíblico sobre a liturgia está em São Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios, escrita ainda antes dos Evangelhos. Foi a primeira vez que alguém, na face da Terra, colocou em papel orientações acerca da Santa Missa: “O que eu recebi do Senhor eu vos transmiti” (11, 23). Em latim: Ego enim accepi a Domino quod et tradidi vobis. O Apóstolo está falando de tradição. Accepi, tradidi. “Recebi”, “transmiti”. Esse é o espírito. Em seguida, ele começa a narrar a Última Ceia:

Quoniam Dominus Iesus, in qua nocte tradebatur, accepit panem et gratias agens fregit et dixit: “Hoc est corpus meum, quod pro vobis est; hoc facite in meam commemorationem”; similiter et calicem, postquam cenatum est, dicens: “Hic calix novum testamentum est in meo sanguine; hoc facite, quotiescumque bibetis, in meam commemorationem”. — Que o Senhor Jesus, na noite em que foi entregue, tomou o pão e, dando graças, o partiu e disse: “Tomai e comei; isto é o meu corpo, que é (dado) para vós; fazei isto em memória de mim”. Igualmente também, depois de ter ceado, tomou o cálice, dizendo: “Este cálice é a nova Aliança no meu sangue; fazei isto em memória de mim, todas as vezes que o beberdes”.

É a primeira vez que foi narrada a instituição da Eucaristia, apenas vinte anos após a Ascensão de Nosso Senhor. São Paulo, o autor, conforme a recebeu do Mestre, transmitiu-a à Igreja. É essa a noção que precisamos resgatar.

Veja que não é o tom deste módulo levantar uma polêmica. A finalidade, importante reforçar, é mostrar que existe essa realidade, o ciclo receber–transmitir, e que por isso a liturgia não está ao dispor do arbítrio humano. É possível haver sim modificações e incrementos, mas sempre debaixo do princípio de que devemos preservar o que recebemos para depois transmiti-lo, conforme a lição de São Paulo: accepi, tradidi

Substância e aparência

Conforme vimos no módulo passado, para entender, viver e discutir sobre os missais, é preciso entender antes qual é a substância da liturgia.

Substância, que é conceito filosófico, indica a realidade que faz uma coisa ser aquilo que ela é. Ora, como mostramos a substância da Missa foi, sim, preservada no Missal de Paulo VI. A substância daquilo que Cristo instituiu na Última Ceia persevera no Missal novo.

No entanto, em termos psicológicos, o que faz com que percebamos uma determinada coisa como sendo ela mesma é a modificação lenta, natural, orgânica dos seus acidentes ­— tamanho, duração, cor, posição etc.

Vamos ilustrar: todos fomos zigotos no ventre de nossas mães. E desde ali já éramos, sem qualquer chance de dúvida, nós mesmos; tínhamos, desde o primeiro segundo, substância de ser humano, e não de hipopótamo, de samambaia ou pedra — coisas que jamais qualquer mãe tenha parido.    

Mas então nascemos e fomos crescendo organicamente. Se pegarmos uma foto minha, pequenino, aos dois anos, e depois outra aos oito, e depois outra adolescente, e outra quando jovem, e outra quando fui ordenado, e assim por diante, veremos que, embora os acidentes tenham mudado, eu ainda sou eu, o mesmo desde sempre, desde a condição de zigoto.

Esse senso de continuidade, de persistência de uma mesma substância, nós só captamos, repito, quando as mudanças acidentais ocorrem gradual e organicamente. Agora imaginem se eu me submetesse a uma intervenção cirúrgica drástica, de modo a ficar absolutamente irreconhecível. Nesse caso, a substância, claro, se manteria intacta; eu continuaria sendo eu. No entanto, isso causaria um tremendo choque psicológico, ao ponto de as pessoas acharem, e com razão, que, substancialmente, se tratasse de um outro.

É isso, um choque, o que acontece com quem vai a uma Missa de Paulo VI, principalmente da forma que ela é celebrada em vários lugares, e depois a uma de Pio V. As pessoas ficam com a justa impressão de que se trata de outra religião — embora substancialmente se faça numa e na outra a mesmíssima coisa.

E veja: eu celebro a Missa de Paulo VI todos os dias, e tento celebrá-la com fidelidade a essa ideia de transmissão da tradição litúrgica. Mas há muita gente que a celebra com espírito de ruptura, de total inovação. E isso cria um choque psicológico, que pode terminar — e aí está o real problema — afetando a fé.

A Igreja, em sua lex orandi, foi desenvolvendo aquilo que o Senhor nos deixou, cuidando de fazer sutis alterações de modo que, num determinado ambiente, se melhorasse a fé e a devoção das pessoas. E eu posso conceder que os pedidos dos Padres conciliares, na Sacrosantum Concilium, eram interessantes e razoáveis em termos de reforma litúrgica. Por exemplo: eles pediam que os leigos aprendessem os cantos gregorianos mais simples, que aprendessem a responder a Missa em latim, e tantas outras coisas que julgo benéficas.

No entanto, o consilium, de Bugnini, foi muito além daquilo que o Concílio permitia, e gerou essas mudanças mais agudas responsáveis por esse estranhamento, por esse choque que temos quando vamos a uma Missa antiga e uma Missa nova.

Quando Ratzinger lança o livro Espírito da Liturgia e fala ali de uma reforma da reforma, ele nos indica que a reforma litúrgica do Vaticano II, como qualquer obra humana, é, sim, criticável – apesar do espanto que essa ideia costuma causar nas pessoas.

Mas nesse módulo não vou criticar o Missal de Paulo VI. Isso farei no próximo. Esse módulo, o segundo, terá um caráter mais histórico. Veremos como, a partir daquilo que Nosso Senhor nos deixou, a Igreja definiu a estrutura imutável da liturgia; como essa estrutura foi servindo, no tempo, aos diversos ritos; qual é a identidade do rito romano; como ela deriva da natureza mesma da liturgia; e como nós, ao conhecer essa história belíssima, fascinante, podemos celebrar com mais devoção, independente do Missal.

Por fim, vamos ver que também é possível falar, com muita tranquilidade, de uma reforma da reforma.

Referências

  1. Joseph Ratzinger, Obras CompletasVolume XI — Teologia da liturgia: O fundamento sacramental da existência cristã. 2.ª ed. Edições CNBB, Brasília, 2019, p. 142.
  2. Ibid., p. 142.
  3. Ibid., p. 141-142.
  4. Ibid., p. 142.